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quarta-feira, julho 12, 2006

"Série Bonecas de Papel": Caroline


Caroline

Por muito tempo reservei-me ao silêncio, nunca gostei de falar muito sobre minhas divagações, sobre minhas preferências, sobre meus interesses. Sempre que me atrevia a fazê-lo, me consideravam uma perdida. Não que seja uma mulher à frente de meu tempo, nem tão pouco minhas visões sobre o mundo sejam diferente da maioria das outras pessoas, a verdade é uma só, olham-me torto por gostar de meninas.
Bem, acho que me interpretei mal, não tenho nada contra meninos, nem tão pouco contra sua libido exagerada, e a falta controle, quando os assuntos são sexuais. Não vou generalizar, pois já conheci muitos homens que faziam sexo tão bem quanto uma mulher, mas a maioria acha que dizer “gostosa”, a uma desconhecida que passa na rua, é um elogio, não uma grosseria, e que algumas respondem, mesmo que caladas: “vai tomar no cu, filho da puta, nunca viu bunda não?”
Minha mãe, carola, daquelas que não soltava da barra da saia do padre, mal percebia que ele também era diferente, como eu. Um dia ela me flagrou dando um selinho de despedida em uma colega de classe, ameaçou-me com duas bofetadas e com a pergunta mais hipócrita que já ouvi:
“_ Você não tem vergonha na cara?”
Como se fosse vergonhoso gostar de minha colega e ser beijada por ela.
Aprendi desde muito cedo a ter respeito pelos outros, coisas do tipo, não importa a raça, a religião, importa sim a índole da pessoa, mas na realidade, aprendi a hipocrisia, pois esse sentimento é comum no ser humano.
Será que a opção sexual de alguém fere o direito de outras pessoas?
Outro dia vi no Jornal Nacional que um policial prendeu duas meninas dentro do campus da USP, no refeitório, por estarem se beijando na boca, uma sentada no colo da outra. Pergunto-me se fosse um casal “convencional” teriam sido detidos? Creio piamente, que não.
Quem deveria ser detido era o milico, que além de ser preconceituoso, abusou do seu poder para demonstrar seu preconceito.
Não acredito, nunca vi e nem vivi coisa mais linda que duas mulheres se amando, há uma aura, uma delicadeza, uma transcendência única, de espíritos que se entendem profundamente.
Quem dera, hoje minha querida Caroline, Carol, como te chamava ao pé do ouvido, tivesse quebrado meu silêncio provinciano antes, queria não ter sido covarde, não ter fugido do amor que tinha por ti, nem cedido aos caprichos de minha mãe.
Hoje, trago-te rosas vermelhas, não mais brancas, como sempre fiz, pois tenho uma confissão a fazer-te, encontrei alguém que me ama, assim como me amou um dia. Mas sou outra pessoa, diferente daquela criança que era, quando nos conhecemos, quando fazíamos amor no banheiro das meninas.
Só agora compreendo a força que brota de um coração dilacerado, só agora entendo seu ato de desespero e a sua coragem. Todos os anos, nesta mesma data, eu venho, e a cada ano que se passava, menos me entendia, e mais compreendia a força que de empurrou pra esse abismo. Ao ler “Aqui jaz uma moça que amou, que chorou, que lutou e desistiu”, revolto-me, pois sabemos que isso não é verdade.
Pichei no mármore frio, com tinta vermelha “Aqui jaz uma moça que soube amar e ensinou-me o amor!”


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.RESPEITE OS DIREITOS AUTORAIS E A PROPRIEDADE INTELECTUALCopyright © 2006. É proibida a venda ou reprodução de qualquer parte do conteúdo deste site. Este texto está protegido por direitos autorais. A cópia não autorizada implica penalidades previstas na Lei 9.610/98.

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terça-feira, julho 11, 2006

A traição

Com a faca na mão ela soltava seus desaforos, dizia aos berros:
─ Ainda te mato, infeliz! Desde que veio morar aqui me trai, desgraçado! Um dia hei de cortar seu pescoço e vou ficar olhando se debater, infeliz, ah se vou!
Enfurecida, começou a amolar a faca.
─ Como é que consegue fugir para casa da vizinha sem que eu perceba? Ai, que ódio, é hoje que me paga, Teteu ! Irá pagar por todos os insultos que tenho que ouvir, as risadinhas de canto de boca que suporto! Sem falar das reclamações do marido da vizinha. Bem que eu podia deixá-lo morrer nas mãos do Álvaro, bem que ele merecia o prazer de te matar!
Resmungava enquanto separava os ingredientes para o jantar, descascou uma cebola, duas, e pôs se a picá-las, começou a chorar compulsivamente, não sabia se por Teteu ou pelas cebolas que faziam arder os olhos.
─ Trato-te tão bem, mal agradecido! Dou-te tudo de melhor, tenho cuidados e até carinho. E ainda assim vai para a casa da vizinha, não vou me conformar, te conheço desde pequeno, não deveria se comportar assim!
Saiu para o quintal, com a dita faca, que brilhava de tão afiada, o galo já estava debaixo do balaio, mas Helena não sabia mais se queria matá-lo, era desobediente, trazia tantos aborrecimentos, mas ainda assim tinha carinho pelo bicho. Com piedade cortou o pescoço do coitadinho e o serviu ao molho pardo no jantar.

sexta-feira, julho 07, 2006

"Série Bonecas de Papel": Vera


Vera

Não me pergunte porque, mas acordo todos os dias com a sensação de que há uma arma apontada para minha cabeça, na testa, bem no meio dos olhos. É uma alucinação que me persegue desde menina, e por causa dela vejo sempre o outro, seja quem for, como um possível inimigo.
Aprendi, desde muito pequena, a não confiar nas pessoas. O que tenho consegui com muito esforço, nada pra mim caiu do céu, acredito que de lá, só os castigos pela vida que levo.
Criei uma barreira que me protege do mundo, sei como magoar, ofender, humilhar, mas sou imune ao externo, o mundo não me afeta mais. Cansei de tentar entender os “porquês”, e me preocupo agora é com os “quandos”, “quantos”...
Talvez esteja pensando que sou uma “menina má”, e sou! Embora mamãe tenha me ensinado que meninas boas vão para o céu, e que conseguirão a paz eterna! Mas deixava meu padrasto visitar meu quarto, talvez eu gostasse das visitas noturnas.
Quando resolvi quebrar meu silêncio, levei uma bofetada e tive minhas roupas todas jogadas no meio da rua, como se fosse um cachorro, não parte de sua própria carne, sangue do seu sangue! Mas tudo bem, a partir daí, manipular as pessoas tornou-se uma regra.
Aprendi uma lição importante, que ser sincera não é o melhor caminho, escolher a hora de ser sincera, sim. Depois disso, a senhora da mercearia, quase de frente à minha casa me acolheu, cedeu um quartinho do fundo pra dormir, dizendo ser velha, viúva, cansada e que precisava de ajuda e companhia.
Vivi com ela por vários anos, ela sim, me tratava com respeito e dignidade, trabalhava como uma escrava, mas tinha um salário. Sei que Dona Milu me amava, mimava-me, comprando vestidos novos, perfumes, como uma filha que não teve, mesmo com tanto carinho não confiava nela, já não confiava mais em ninguém.
E numa bela manhã de domingo, encontro a pobre morta, em sua cama, teve morte digna, foi a única pessoa boa que conheci, os herdeiros apareceram, fui despejada. Mais uma vez, sozinha, mas agora com minhas economias e minha experiência, poderia recomeçar.
Nesse meu recomeço fiz uma promessa, que venderia ao mundo cada sorriso meu, pelo preço mais caro que pudessem pagar, até chegar onde queria. E cumpro minha promessa. Não sei o que é o amor, sei o que é a dor, e o vil metal. Ardo em prazeres falsos, para valer mais, tiro até o último vintém de quem passa pelo meu caminho. E se tenho oportunidade derrubo, destruo, aniquilo, por simples prazer, acho que a forma que encontrei de compensar minhas mazelas.
Sei que há muito mais que isso que vivo, mas sou jovem, terei tempo de desfrutar tudo que não tive oportunidade, mas enquanto não posso alcançar o que sonho pra mim, devoto meus dias ao “deus do dinheiro”, entrego-me aos desejos dos outros e renego minha própria existência.
Talvez depois de ler meu relato, tenha pena de mim, não se engane, manipulei você também.


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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sábado, julho 01, 2006

o encontro III

O encontro (parte III)

Não que eu estivesse mentindo, dissimulando ou coisa parecida, ao que me cabe em entendimento as mulheres são perversas mesmo. Trazemos conosco a síndrome do poder, da dominação, é prazeroso ter o comando da situação. Culpamos-nos, nos ferimos, nos matamos sempre, para que talvez amanhã sejamos diferentes do que somos hoje.
Mudar é uma constante somos como camaleões, lulas, polvos e outros animais que se camuflam para se proteger. Não quis ver Sig sofrer, só queria racionalizar suas reações diante do que não teríamos nunca, mas diante da descoberta de uma possibilidade de nos machucarmos, decidimos romper.
Hoje todos meus atos são claros pra mim, desde o amor por Sig, até o banho no Danúbio, tudo é lógico, agora.
Eu me disfarcei, me feri e no fim fugi como pude de meus predadores naturais, mesmo sabendo, que um dia, seria apanhada por um deles e que minha corrida era mais contra mim, contra o que sentia por ele, do que contra meus inimigos.
Mas não quis me esconder dele, lembro-me do esforço para continuar ali, mesmo sabendo que seria doloroso dar-me por vencida e depois de tombada pelo desejo de minhas próprias entranhas, me vi só como sempre fui.
Assim, mesmo permitindo que Sig ficasse comigo um bom tempo, desfazendo as amarras que a sociedade me impunha, libertando-me para uma vida plena e moderna, trazia comigo um pavor incontrolável de perde-lo, de perder o controle sobre mim mesma, perder a sanidade.
Não rezei a cartilha de mãe, que e mesmo morta ainda tentava me dominar. Não sei se me amava e me protegia, ou se me odiava e me privava de tudo o que mais quis. Por vezes sonhava com ambos conspirando contra mim.
Mas fui mais forte que ela e passei a ignorar as pessoas que me rodeavam. E Sig ao meu lado, sustentando-me com seu afeto, cuidando de mim. Mas não me adaptei, nunca me adaptarei à sociedade, não o culpo por ter tentado, mas meus padrões são diferentes da maioria das mulheres dessa era.
Jamais me esquecerei do fato de ter perdido a memória, mas talvez aquilo fosse necessário. Histeria, ato falho, amnésia temporária, como saber?
O certo é que mudei de atitude pouco depois de ver meu amado, naquela manhã ensolarada em Viena, após nossa longa caminhada. Recordo-me de entrar em um café e pedir todos os licores. Embriaguei-me como nunca. Andei sem rumo, até encontrar-me às margens do Danúbio, e ao som de “Vozes da Primavera” dancei com ele, me despi de minhas anáguas, de meu espartilho, que roubaram a infância e o fôlego, entregando-me sem culpa, inteira.
Voltei a ser menina, enquanto o mundo rodopiava, os sinos dobravam, alguns passantes riam, outros paravam para olhar, eu me deixava levar, sentindo o frescor da água me invadir e como era bom não ter o peso das anáguas!
Assim depois de libertar-me de meus medos fiquei exausta, um descuido, um escorregão, uma queda e não me recordo de como acabei no hospital. Sei que estava cansada daquela casca pesada que carregava comigo, o banho me livrou por alguns instantes e Sig me ajudou por muito tempo. Mesmo estando longe dali, naquele momento, suas palavras me incentivavam, me permitiam ser eu e deixei-me levar pela correnteza.
Aprendi que é inútil lutar contra forças maiores que eu, mas que vale lutar pelo que acredito e ao acreditar, o impossível pode tornar-se real, mesmo em sonho, ou em um simulacro.
Ao sair do hospital, fui para casa, queimei todo meu enxoval, numa revolta contra meu passado fútil, não queria mais perder meu tempo com coisas inúteis, queria meu tempo para ser feliz. Encontrei um bom emprego, onde ganhava o suficiente para viver e estudar e deixei a clausura que tia Milu me impunha.
Agora compreendia o que minha mãe passou, mas a pobre não teve forças pra lutar, escolheu o caminho mais curto e achou melhor ou mais fácil, se matar.
Compreendo melhor o que se passa aqui, em meu íntimo, entender que Sig e eu nos amamos e será assim enquanto vivermos. Mas nos libertamos, não quisemos mais amarras, eu não quis mais jaulas, um erro, como saber? E mesmo longe dele, sinto-me acorrentada ao mesmo sentimento que nos uniu. Aquele encantamento de outrora se faz saudade e persistência para continuar distante. Ainda me escreve longas cartas, conta de seu interesse pelo desconhecido mundo da psique e me surpreendo encontrando-me em cacos de suas pacientes.
Mas já não assina mais “de seu Sig”, assina apenas “Sigmund Freud”.
E mesmo sabendo que posso mudar tudo com um simples sim e um sorriso, pois meu sorriso compra tudo, prefiro comandar minha vida, longe de Sig. E de alguma forma ainda caminho na nossa praça numa Viena em primavera, ouvindo “As vozes da Primavera” dentro do meu coração e faço com que nosso encontro seja eterno, congelado nos passos lentos daquele passeio.

o encontro II

O encontro (parte II)

Acordei com um gosto amargo na boca, não me lembrava de ter dormido e aquele lugar não podia ser meu quarto. A cabeça girava, estava confusa, atordoada, com dores por todo o corpo.
Abri e fechei os olhos incontáveis vezes, na tentativa alucinada de ter a vaga lembrança de quem era, e o que fazia ali, em vão.
Tinha o cheiro de primavera impregnado em minha pele e alma e parecia dançar uma valsa bêbada, que tocava lenta e o cravo parecia desafinado, engasgado com suas notas, quase num pedido de socorro.
Passei minhas mãos sobre o rosto, senti um corte na testa, parecia febril, levantei o lençol, um hematoma no joelho e uma escoriação no braço. Não havia um espelho ali, Talvez se visse meu rosto, ver meu reflexo no vidro e ver onde estava, mas já era noite e não conseguia chegar à janela.
Não me lembrava do que causara aquele estrago todo. Onde estariam os meus? Por alguns segundos senti-me uma indigente, mas esse sentimento não me tomou por muito tempo, a curiosidade de saber de mim era maior que qualquer outro sentimento. Estava mal vestida e despenteada e isso era um ultraje, sempre fui tão vaidosa, aquilo me parecia uma afronta, uma brincadeira de mau gosto.
O relógio fazia um barulho estranho, e os ponteiros não saíam do lugar, o ponteiro dos segundos dava pulos, no mesmo lugar. Estaria quebrado ou eu me encontrava em algum lapso temporal?
Agoniada, tentei me levantar, mas não tinha forças e daquele jeito só me machucaria mais.
De algum lugar lá fora, alguém cantava, com uma voz destoante, como se sussurrasse uma canção de ninar, baixo, bem baixo...
“Cante uma canção enfadonha
Dessas muito medonhas
E veja se desperta do pesadelo que sonha
Cante o copo com água, o laxante!
O descongestionante, o calmante!
Cante para matar o tédio
Que contra a vida
Não há remédio
remédio
Que não seja a sorte
Que não seja a morte”
Aquela maldita música fazia com que minha cabeça rodasse ainda mais, precisava de um analgésico, algo que aplacasse minhas dores emocionais, estava só, abandonada, e aquele cheiro de primavera já me deixava enjoada e mesmo assim, adormeci.
_Querida, querida, que loucura foi essa?- dizia alguém baixinho, parecia me tirar de um transe profundo – Querida, acorde!
Ao abrir os olhos, eu deparei-me com um homem, jovem, bonito, bem vestido e ao encara-lo, senti-me invadida, feia, tentei cobrir o que pude, mas ele estava sentado sobre o lençol.
_Querida, não fique assustada, se te incomodo posso deixa-la sozinha, por alguns minutos, até se recompor.
Peguei firme em sua mão, não poderia deixa-lo ir, como descobriria quem era e o que fazia ali? Pedi, num gesto desesperado, que não me deixasse só.
_Como cheguei aqui? O que aconteceu comigo? – não queria demonstrar meu desespero, nem a extensão de meu esquecimento, não consegui disfarçar.
Com um gesto gentil, passou a mão sobre minha testa.
_Está febril, é melhor descansar! – agora ele não conseguiu disfarçar o desespero.
Não descansaria enquanto tudo não estivesse bem claro pra mim, a começar de quem era.
_Só quero saber o que faço aqui, o que acontece.
Ajeitou meu travesseiro, ficando bem próximo, seus braços quase me tocavam, seus olhos pairavam sobre o decote da camisola, demonstrava desejo por mim. Talvez pudesse me aproveitar disso, resolvi arriscar.
_O culpado disso tudo é você! – não tinha idéia do que dizia, mas podia dar certo e talvez fosse mesmo culpa dele, tudo aquilo, tinha necessidade de encontrar um culpado.
_Não creio que seja minha culpa, querida! – sorriu – Essas coisas acontecem, entendo sua atitude, mas você deveria ter sido mais cautelosa. Isso sim e eu não percebi seus sinais. Aí reside minha culpa.
_Não tenho me cuidado? Como pode dizer isso? Nem me imaginava e nem me sentia doente. Ri quase constrangida, na tentativa de dissimular minha ingrata surpresa.
_Creio que estava confusa e ainda está! Seu comportamento estava diferente ontem, seu corpo deu muitos sinais, poderia ser difícil pra eu perceber, mas pra você não. O cansaço ao caminhar, as tonturas, o mal estar.
O chão e o quarto giravam como o um carrossel, cheio de luzes sombras à sua volta, perdi o eixo. Ele esfregava meus pulsos com força, na tentativa de que eu permanecesse acordada, mas fui sumindo aos poucos, até desfalecer.
Quando acordei, ainda estava comigo, acariciava meus cabelos e punha compressas de água em minha testa. Agora tinha certeza do nosso envolvimento, algo de alguma forma, nos unia.
_Trate de ficar boa logo, temos um trato, lembra? Dizia ele olhando para a compressa dentro da bacia, e sorrindo.
_Temos um trato? Não me lembro de trato algum! Temos?
Continuou olhando para a compressa, torceu e colocou sobre minha testa.
_Talvez não tenha dividido todos os meus pensamentos com você, mas creio que é chegado o momento.
_Ah, claro, - eu debochava – falar com uma moribunda em seu leito de morte é mais fácil!
As palavras saíram dessa vez sem que eu as escolhesse. Ele ria de mim, percebia que não era a única que confabulava.
_A febre está cedendo, - disse puxando o cordão preso em sua casaca e ao abrir o relógio explicou que tinha trabalho por fazer – volto antes do anoitecer. Num gesto automático olho para o relógio da parede, ainda parado, marcava dez para duas e o ponteiro dos segundos sempre sobre o doze, sempre tentando sair, preso naquele segundo infindável.
Então, beijou-me a mão e se abaixou para me beijar a face, mas apenas sussurrou em meu ouvido:
_Temos um trato e se esqueceu, faça o favor de lembrar!
Quem era aquele homem que mexia tanto comigo?
Chamou a enfermeira para me acompanhar e foi embora, pelo menos não ficaria mais sozinha.
Depois de alguns segundos ele voltou.
_Querida, eu não gosto de ficar esperando e hoje, passei a manhã te esperando na praça, não faça mais isso!
Dessa vez beijou-me a face e saiu correndo, dava pra ouvir suas gargalhadas bem depois de ter deixado o quarto. E como para aquele momento não fugisse, segurei o seu beijo com as duas mãos e meu coração estava calmo, aquele desconhecido tinha o poder de me acalentar os medos, as angústias.
A enfermeira era uma senhora de meia idade, olhava-me nos olhos, sisuda, sempre com as mãos frias, mas cuidava de mim com carinho. Anotava tudo, desde os remédios, refeições, media minha temperatura. Será que era assim com todos os pacientes do hospital, era tão quieta, que às vezes me assustava, eu não consigo ficar calada muito tempo, como ela conseguia sustentar aquele silêncio, parecia-me tortura.
O tempo parecia estar estacionado como as horas do relógio na parede.
Sentia vontade de sair correndo, mas queria poder me lembrar, desejava tantas coisas que me perdia nos meus anseios. E sentia-me presa naquele segundo infinito. Minhas vísceras estremeciam, o pavor me sufocava, a febre só aumentava, estava sem ar, queria gritar, mas poderiam tomar-me como louca.
E poderia ser esse meu mal, porque não me lembrava de nada, a pancada na cabeça poderia ter causado o esquecimento. Tive a nítida impressão de estar acorrentada em um lugar escuro, com uma janela inalcançável, por onde entrava uma luz amarela, que iluminava a mim, baratas, ratos, lacraias, sujeira por toda parte. Queria chamá-lo, mas estava amordaçada.
_Tente voltar criança, - uma voz me dizia – tente voltar!
Lentamente voltava do pesadelo, estava tendo alucinações. E alguém do lado de fora do quarto cantava a mesma canção. Quem era aquela mulher?
_Sou sua Tia Milu, sou sua única família, não se lembra, criança? – dizia, tinha cabelos cinza e olhos amendoados, quase doces - Irmã de seu pai, não se lembra?
E eu não me recordava dela.
_A enfermeira me disse delirou por conta da febre, que gritava, chorava e anotou muito do que disse, talvez queira ler, parece confusa. Entregou-me um bloco de papel, com várias frases e palavras sem sentido, soltas. Talvez aquilo pudesse me abrir alguma porta ou me faria lembrar de tudo.

o encontro I

O encontro (parte I)

Sig aproximou-se sem pressa, sem me olhar, veio devagar, contemplando as árvores rodeadas de flores e pedras do jardim da praça. Sentia-me estranha, lembrava-me da primeira vez que o vira, sentado na confeitaria, olhava-o como a um estrangeiro que acaba de chegar, tomada por um medo íntimo e curiosidade incontrolável. Era invadida agora pelo mesmo sentimento, queria sair correndo dali, sabia que se continuasse desejando-o daquela maneira, o dissabor e o desencanto seriam inevitáveis.
A sombrinha e o vento pareciam cientes disso e me puxavam para traz, minhas anáguas estavam pesadas demais, nunca me sentira tão desconfortável e tão feliz. Uma saciedade que me fez fincar os saltos no chão, segurar o fôlego e ficar imóvel, até sermos apenas eu e ele em um olhar.
Quando finalmente chegou ao meu lado, ofereceu-me o braço esquerdo e eu entrelacei minhas mãos nele, sem nenhum cumprimento formal, começamos a caminhar rumo à Igreja de Votivkirche, num dia agradável, a primavera explodia em Viena, em todas as usas cores. Meu vestido, em harmonia com o cenário colorido, parecia dançar a cada passo que dava. Não sei bem explicar a sensação que tive, pela primeira vez, tudo soprava ao meu favor. Repleta de um afeto que, como o vento, tomava meus pensamentos desalinhando meus cabelos e fazendo um sorriso transbordar de minhas entranhas.
Percebi que uma mulher de meia idade nos observava, sentada em um banco, alimentava os pombos, mas não olhava para eles e sim para nós dois, balançando a cabeça, em um sinal negativo. De onde teria surgido aquela mulher, não estava ali, ou só a percebi pelo seu gesto repreensivo?
Antes de comentar com ele sobre a tal mulher, Sig disse:
_ Vamos pela sombra, querida, está muito calor!
Concordei silenciosa e seguimos, confessei sentir-me incomodada pela maneira que aquela mulher me olhava.
_Não ligue, porque se incomoda com ela? Há tantas pessoas nos vendo, o mundo nos vela, estamos felizes e apenas por esse motivo, estaremos sempre sendo vigiados. Talvez por inveja, por curiosidade, todos querem o “elixir da satisfação” e não se conformam de ver outros desfrutando dele, despudoradamente como nós.
Ri, quase sem jeito, na tentativa de esconder o contentamento que aquela frase me causara.
_Você é engraçado! Sendo assim, todos me incomodam, não quero ser observada, nem tão pouco invejada!
Aquilo não era verdade, gostava de ser invejada, como era bom estar ali com ele, e saber que tantos outros não tiveram o sabor da plenitude que eu sentia agora.
Sig respondeu-me com aquele sorriso de canto de boca, que sempre dava, quando parecia deduzir sobre meus pensamentos mais profundos.
_Como queria ter seu discernimento, saber quando devo ser quem esperam que eu seja ou apenas ser quem sou. Seria mais fácil viver. A vida parece-me um simulacro, que cultivamos como se fosse real. Tantas conveniências e regras de conduta. Sinto-me caminhando sobre o fio de uma navalha, não vou me adaptar nunca! Faço tudo errado e todos os olhares me condenam. Posso dizer-te que a transgressão me agrada, mas depois vem o vazio, talvez por ter tão poucos pra compartilhar o que penso. Queria pode me isolar, a coexistência me faz mal, muitas vezes me sinto tão violada, que me oculto em mim para não explodir!
_Não vejo motivos para o isolamento total, nem para a adaptação arbitrária... – dizia ele, mas já estava presa a ele e à minha insegurança. Será que Sig me compreendia? Se não houvesse motivos para a adaptação, para que viver em sociedade e porque nos conforta tanto estar em grupo? Não se tratava apenas de conviver e sim de tolerar.
Nós dois já havíamos quebrado essa barreira, apetecia-nos mutuamente de nossa companhia, tínhamos noção do encantamento que exercíamos um sobre o outro. E ele tinha razão, o isolamento era algo impensável, inalcançável, depois de ter estado com ele.
Um simples passeio, um encontro marcado era algo intocável, o nosso tempo era diferente, andávamos serenos e calmos, enquanto a humanidade corria. O vento hora ou outra queria levar-me a sombrinha, mas o sol já estava alto, não poderia me dar ao luxo de fecha-la, as roupas eram pesadas, já não me sentia tão bem. O desejo era ficar mais com ele, diminuía o passo na esperança que o tempo seguisse meu ritmo.
Uma menina arrancava as flores do jardim e destruía todas as pétalas e ria, orgulhosa de seu feito, cada rosa despedaçada causava-lhe uma gargalhada plena.
_Encanta-me o “Toque de Midas” invertido que o ser humano tem, transforma em dejeto, tudo o que toca. Vejo-me naquela menina, inocente, que despedaça flores, devasta sonhos, acaba com a vida dos outros e sorri. E seu sorriso, compra tudo!
_Alguns acreditam no mito da Fênix, minha querida! Da devastação brota o renascimento!
_É uma maneira de interpretar, mas apavoro-me com essa possibilidade, reconstrução a partir da destruição. E parece servir-me como uma luva em relação àquela mulher, que vimos há pouco, por vezes sou como ela. Sinto-me opressora, quero reprimir, destruir a dicotomia e impor a ditadura de minha anarquia pessoal. Sei que meus parâmetros são equivocados, que minhas teorias são falhas, mas mesmo assim necessito de aprovação e se não tenho quero fuzilar meu oponente.
_Não há como estabelecer parâmetros perfeitos, por isso tentamos seguir ou transgredir algum modelo pré-estabelecido e sem esses modelos muitos se sentem perdidos.
_Por isso digo que a realidade é um simulacro, temos que seguir a idéia estabelecida e não nossa intuição. É tão claro para mim, que o homem e a natureza não andam assim de braços dados como nós dois! Como é evidente que a relação entre o homem e a natureza seja o mesmo dos amantes. Como o homem busca a destruição de si e de tudo que o rodeia, a natureza tenta sobreviver a ele. O amor também destrói, enquanto um que busca a destruição de tudo o que o rodeia, o outro que tenta sobreviver ao amor que sente e ao ser amado.
_A única certeza que tenho, -dizia Sig- é que o amor é um estágio da loucura.
Rimos muito depois da afirmação, mas logo o silêncio dedutivo me tocou.
_ Se o amor é insanidade, meu querido, o ódio é uma sanidade? Seria mais lúcido quem ama ou quem odeia?
Sig continuou calado, com os olhos presos no horizonte, parecia intrigado com o cunho da pergunta, puxou o cordão preso em sua casaca e abriu o relógio dizendo:
_Querida, já passa do meio dia, tenho trabalho por fazer, amanhã nos veremos aqui, no mesmo horário.
Beijou-me a palma da mão, puxando-me ao seu encontro, pensei num provável primeiro beijo, mas apenas sussurrou-me ao ouvido:
_Odeie, não há insanidade no ódio, amar sim, é uma debilidade temporária.
Mesmo desapontando-me com duras palavras, tocar sua face, a barba por fazer, fez-me arder as vísceras e a face.
Saiu com o passo apressado, quase desesperado. Passarei na confeitaria, será o álibi perfeito se minha mãe me perguntasse sobre mais uma manhã perdida, passaria também no armarinho, pois haveriam de ter chegado novas linhas de seda, perfeitas para as aulas de bordado rococó com Dona Milu.
Pobre Dona Milu, pobre mamãe! Vítimas de meu ódio íntimo. Tão inocentes!
Embora tivesse certeza que eu era a vítima maior.
Pobre de mim, que amo Sig e sei que a letra “S” jamais será bordada nos monogramas de meu enxoval.



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