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terça-feira, junho 27, 2006

"Série Bonecas de Papel" - Bia


Bia

A primeira vez que a vi, passeava na orla, submersa numa brincadeira de chutar as ondas, corria na praia, sorria e falava sozinha. Observei sua diversão, quase anônimo, até que um certo momento ela parou e me encarou. Naquele segundo, já sabia que estava perdido.
Aproximou-se, sentou-se do meu lado e olhamos juntos e mudos, o pôr-do-sol.
Enfim, ela quebrou o silêncio me dizendo que existem dois tipos de pessoa, as que são as ondas, e as que são as pedras.
Hoje a compreendo depois de tantos anos. Percebo-me velho, nunca me imaginei assim, tripudiado por esse sentimento que suga meu ânimo por completo, entregar-me-ia à morte se ela viesse. Mas ela não vem.
Depois que Bia se foi, minha existência tornou-se um fardo pesado demais para meus ombros cansados.
Enchia a casa e meu coração de alegria, mas era jovem demais, era onda, como poderia se prender a alguém com eu?
Sinto saudades dela, embora seja grato por ter tido o prazer compartilhar com ela os mais felizes dias de minha vida.
Nem meus cabelos grisalhos, nem toda a minha experiência, ou as precauções da maturidade, protegeram-me dessa menina me abalava, que fazia tremer minhas carnes.
Era doce, macia, viçosa, uma dessas frutas que dão água na boca.
Amo Bia por tudo que me ensinou com seu jeito meigo, fala mansa, conseguia dizer palavras duras, com uma gentileza quase inocente. Fez-me entender a delicadeza de todas as mulheres do mundo.
Dançava com o vento e o riscava com seus movimentos lentos e lascivos, perdia-me naqueles seus sorrisos mudos, que ecoavam por toda espinha dorsal.
Ela era linda!
Aprendi fazer amor com ela nos seus dezenove anos e eu com meus cinqüenta, antes dela era só instinto, sem cuidados, sem entrega.
Desvendou todos os seus segredos e se revelados despertariam as beatas e pasmariam as prostitutas da 315 norte.
Alcancei um amor sem cobranças, livre, independente.
Lembro-me de velar seu sono, dormia sorrindo depois de treparmos.
Eu deitava na rede ao lado da cama e passava a noite em claro, desenhando suas curvas, seu rosto, maravilhado com a perfeição daquela figura.
Sobraram-me as lembranças e os desenhos espalhados por todo meu quarto. Tinha um olhar felino que retratei incansável, cabelos negros que adornavam sua pele alva.
As melhores gravuras são as de suas mãos, dedos longos e finos, toque aveludado, e o prazer que me concediam.
Era perfeita!
Mas como disse era livre e ao me descobrir preso aos seus amores e carinhos, se foi e não voltou mais, deixando-me algumas peças de roupa e essas lembranças latentes.
Apetece-me lembrar de Bia e pensar que ainda é livre, é como o mar.
Alguns a tomariam como uma jovem lunática, outros como uma devassa irresponsável, mas a única certeza que tenho é que ainda amo Bia.
Sinto-me a pedra, talvez aquela onda ainda quebre em mim.


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


RESPEITE OS DIREITOS AUTORAIS E A PROPRIEDADE INTELECTUALCopyright © 2006. É proibida a venda ou reprodução de qualquer parte do conteúdo deste site. Este texto está protegido por direitos autorais. A cópia não autorizada implica penalidades previstas na Lei 9.610/98.

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quarta-feira, junho 21, 2006

Série "Bonecas de Papel" - Ana




Ana

Só naquele instante entendeu o significado daquela frase, que parecia tão inofensiva: “Fale agora, ou se cale para sempre!” Calou-se naquele momento em que fazia as promessas nupciais, calou-se pelo sacramento do matrimônio, calou-se por ignorar a avalanche de “cale-se” que a tombaria, deixando-na liquidada, fadada àquele sofrimento diário e contínuo.
Percebeu-se muda, por anos, abrindo mão de tudo, permitindo que ele a explorasse e em seguida a consolasse com migalhas de um amor febril e moribundo. Sentia o chicote da hipocrisia açoitando sua carne e seu ego, não gritava, não chorava, apenas deixava que rasgasse seu orgulho e negasse o que era seu por direito.
Por tantas vezes Ana fechou os olhos, para não se encarar mais, não sabia que força era aquela que ele exercia sobre ela, que a dominava, mas já estava farta, já não restava nenhum sentimento e já tinha tomado sua decisão.
Juntou em sua pequena mala, seus pertences mais queridos, dois ou três vestidos, o perfume, o batom, um casaco, pois os dias eram frios, e as noites mais longas. Sairia antes que ele chegasse. Enquanto dobrava as roupas íntimas, lembrava-se que tudo era diferente, Cláudio era um bom homem, apenas se esqueceu que ela ainda precisava de seu amor, de sua atenção e não ia mais mendigar nada.
Ana apenas se perguntava em que parte daquele relacionamento o amor se perdeu, deixando apenas a rotina e o desamor? Não queria chorar, prometeu a si mesma que não choraria mais, e que Ana Lemos Castro morreria hoje, ali, e que voltaria ser Ana Lemos, apenas.
Depois de tudo pronto resolveu tomar banho, retirar até a camada de infelicidade que estava grudada em seu corpo. Pegou seu vestido florido, o mais colorido que tinha, o que Cláudio chegou a pedir para jogar fora, pois era horrível. Colocou-o devagar, como que para se vestir da nova vida, penteou-se, perfumou-se, fechou a casa toda e depois de trancar a porta da frente, colocou a chave debaixo do tapete.
Agora estava só, livre, tinha suas economias, atravessou a rua, pegou o ônibus e desceu na rodoviária. Comprou uma passagem para uma cidade qualquer de interior. Ao embarcar nem olhou para trás.
Dormiu profundamente, estava exausta, sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol entrarem pela janela, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro e sonhava com Cláudio, podia ver os cacos de sua felicidade em cada quadro. Mas tudo é volátil, até os sonhos acabam e ela estava desperta.
A noite caía branda, enquanto Ana olhava as paisagens passando, pensava o quanto eram preciosos os seus dias, o tempo a tragava.
Aquela noite pedia o casaco que há muito não vestia, sentiu-se aquecida e protegida, o cheiro de roupa guardada estava impregnado nele. De alguma forma o casaco trazia seu passado de volta, mas logo voltava à realidade. Via seu próprio reflexo no vidro e estava linda, uma beleza que jamais admitira ter, que se negou a ver por vários anos.
Agora, acomodada, aquecida, dormiu mais uma vez, sonhava com seu casamento, tudo parecia mais um circo, mulheres pesadamente maquiadas, com vestidos cafonas, homens de ternos amarrotados, todos sem modos. Conseguia entender os comentários maldosos de todos ao mesmo tempo, aquilo tudo era muito angustiante, queria gritar, mas estava amordaçada, mas porque não saía correndo, como queria, olhava para as pessoas e todas riam dela. De repente os sons mais altos somem, ficando somente os sussurros: “Não será feliz, não será feliz!”
Uma mulher no canto direito do altar ria, ria tão alto que o som ecoava na igreja e todos cantavam em coro: “Não será feliz com ele, não será feliz com ele!”
Acordou assustada, e aliviada com sua alforria, seria feliz sozinha, sozinha. Mas até quando seus fantasmas a perseguiriam?


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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Série "Bonecas de Papel"- Lídia





Lídia

A mãe a olhava incansável e pensava em silêncio mórbido: “Lídia já sabia o que queria da vida aos cinco anos! Era diferente das crianças da sua idade e até as professoras, que em sua maioria são céticas, diziam que ela era precoce”.
Não tinha vaidades, nem as fúteis nem as necessárias, até para passar um batom, quase travavam uma guerra. E ali, deitada, a mãe conseguia ver suas unhas sem nenhum cuidado vão.
Não conheceu o pai, sorte dela, vivia mais bêbado que sóbrio, pensava a mãe. Menina estudiosa e esforçada. Ingressou na faculdade aos dezessete anos, já tinha um bom emprego aos dezoito e aos vinte e um se formou com louvor.
Depois da formatura foi morar sozinha, escolheu um apartamento próximo ao prédio que trabalhava, gostava de caminhar, de sentir o cheiro da fumaça de óleo diesel, mas não gostava de sinais fechados, e buzinas ecoantes, logo pela manhã, acordava de mau-humor.
Nunca recebia visitas em casa, pois seu apartamento era um caos instalado, papéis, anotações, por todos os lados, como a maioria das jornalistas, era muito desorganizada, chegava a deixar recados em sua secretária eletrônica, para não esquecer os compromissos.
O certo é que muitos a julgavam uma pessoa difícil de se relacionar, tinha poucos, mas seletos amigos.
Trabalhava muito, em dois jornais, um como editora - assistente e no outro como repórter de campo, e escrevia secretamente contos eróticos para uma revista especializada, eles rendiam um bom dinheiro também, e ludibriavam seu desejo de ser escritora, ter seus contos espalhados em livrarias, autografar para os amigos. Assinava os contos com um pseudônimo, para permanecer anônima. Tudo para complementar a renda e poder arcar com as despesas de duas casas.
Como repórter cobria pequenos crimes, brigas conjugais, vinganças, o que terminasse em homicídio, lá estava Lídia querendo saber da história. Os assassinatos exerciam um poder de fascínio sobre ela, havia paixão, drama, emoção, tudo que lhe faltava em sua vida monótona e solitária.
Passava a maioria das noites em claro, acompanhada de Hermes, seu gato, que quase não miava, sua Olivetti era a amiga mais fiel, que entoava música para ninar. Seu compasso firme, as batidas fortes de seus dedos nas teclas, sempre a faziam dormir, no meio de um conto, ou de um artigo. Quando queria sair um pouco de casa descia ao ‘Café Noir’ que ficava do outro lado da rua, pedia cappucino com conhaque e se embriagava, fumava todos os seus cigarros e desmaiava na cama.
Por vezes, sonhava viver dentro de seus contos, sendo amada, desejada, querida e acordava assustada, mais com sua realidade do que com seus pesadelos.
Naquela manhã, mais uma vítima, mulher jovem, a cena era tétrica, mas ainda era uma bela cena, mesmo jogada ali, daquele jeito, nua, com a boca meio aberta, os olhos esbugalhados que pareciam fitar os seus, sentiu um calafrio penetrar suas vísceras.
Muitas pessoas passavam, o segurança do hotel tentava conter os curiosos, hora hóspedes, ora funcionários, alguns fotografavam, outros cochichavam, e riam, num total desrespeito e o ódio tomou-lhe os olhos, enquanto gritava com todos, não é nada disso que estão pensando, mas parecia uma vertigem, tudo girava.
E naquela situação de tontura e confusão mental, Lídia se lembrou de que Bruno, que era o fotógrafo de suas matérias, ligou para avisar de um assassinato, crime passional, e só agora se lembrava como tinha chegado até ali. Ao chegar, ele já esperava por ela, indicou rapidamente um dos apartamentos do luxuoso hotel.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
De repente mais flashs, que ofuscavam os olhos e clareavam a mente, quando ele abriu a porta, uma cama coberta de rosas vermelhas, beijos, declarações de amor. As imagens voltavam com os flashs das máquinas, ele dizendo que a amava, que desejou aquele momento, por anos. Bruno amarrando delicadamente suas mãos com lenços na cabeceira da cama, os beijos, o sexo.
Beberam muito, tomaram pílulas, e ela se lembrava das alucinações, da intensidade do sexo, do aroma das rosas, dos espinhos cravados na carne a cada penetração, mas não sentia dor, só o êxtase profundo.
Foi pega de surpresa, como um animal faminto, ela se entregou aos seus desejos, se deixou levar por ele, como nunca havia se permitido antes, sentiu-se livre, feliz, saciada.
Dormiu profundamente.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
Ele a desamarrando e mais declarações sobre seus contos, a chamava de rosa-dos-ventos, o pseudônimo que usava nos contos supostamente secretos, e depois de várias garrafas de vinho ela pergunta se morreria de amor.
Bruno sem hesitar, responde que sim e pede para que Lídia descreva com detalhes e ali fizeram um pacto.
Mais uma vez a escuridão e o silêncio, quebrados pelos flashs.
E olhou mais uma vez para o corpo da mulher, um único tiro no peito, e tocou o seu dando-se conta que aqueles olhos eram dela. O outro tiro foi o de clemência por si, Bruno havia se matado, seu corpo estava ali também, mas bem escondido, num canto atrás da cama.
Agora, talvez entendesse o amor de sua mãe, talvez seus olhos estivessem aguçados para uma boa história e cegos para o espelho, nunca se vira linda, como estava ali, mesmo estando morta, mesmo nua, não tinha mais pudores, não se importava mais.
As mães amam as filhas, mas retardam seu crescimento, dão valor excessivo a elas, havia poucas pessoas naquela sala, e sua mãe a velava zelosa, acariciava seus cabelos, como se ainda estivesse ali, com seus cinco anos, necessitada da presença materna.
A mãe tinha razão, Lídia sabia o que queria ser, desde os cinco anos, mas não se dava conta que nunca soube quem sempre foi.

Agradecomentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.

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