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segunda-feira, agosto 14, 2006

Noites de outono - Homenagem ao amigo Antônio Alves

Nestas noites frias de final de outono, lembro-me de minha vida, recordo-me de fatos, que até para mim que vivi, parecem inconcebíveis. Pairou em meu pensamento ao sentir esse vento frio, um acontecimento desse mesmo outono, mas ocorrido há quase cinqüenta anos, na Fazenda Nova Morada, onde passei a viver depois que me casei.
Era uma época difícil, quando as fazendas eram grandes latifúndios que separavam por quilômetros um vizinho de outro, e as famílias pela distancia se faziam cada vez menos unidas pelos laços afetivos. Mas naquela altura de minha história, já tinha me acostumado com a vida dura que a fazenda impunha, meu marido era dentista, mas tornara-se por vezes médico por necessidade, pois a cidade mais próxima ficava há dias de viagens, feitas ainda no carro de boi. Antes de me casar fiz um curso de enfermagem, e além do consultório dentário, tínhamos uma venda onde de quase tudo podiam encontrar os moradores e forasteiros que passassem por ali.
Grávida do meu primeiro filho foi necessário que Antônio encontrasse alguém para me auxiliar nos trabalhos domésticos, entrava em minha casa a minha maior companheira, Joana, uma mulata magra, franzina, e num primeiro momento ao deparar-me com sua figura, duvidei que conseguiria dar conta do trabalho pesado da roça. Mas quanto mais a minha barriga crescia, mais responsabilidade via naquela mulher de feição frágil e solidária, sempre fazia todo serviço da casa, e ainda tinha tempo para se sentar comigo na varanda da casa da sede para tecer comigo o enxoval do bebê. E o mais nobre é que percebia carinho naquela atitude, fazia com gosto, como se fosse uma mãe, ou uma irmã me ajudando.
Passaram-se os dias, os meses, e finalmente sentia as dores, que a cada momento ficavam mais fortes, me lembro daquela dor, a primeira, e todas as outras que vieram em seguida, a parteira vindo apressada, mandando ferver a água, queimar a tesoura, a correria de Antônio, com aqueles olhos azuis esbugalhados de desespero, a pressa de Joana em obedecer as ordens da parteira. E eram dores intermináveis, e o vento gélido já soprava aumentando a sensação de dor e contração dos músculos, como era muito jovem, pensava que aquele seria meu último dia na terra, ai como doía!
A parteira mandava com uma voz quase autoritária, “faz força menina”, mas já não tinha mais de onde tirá-la, desfaleci por um momento, e ao retomar meus sentidos Antônio já estava no quarto que mais parecia uma cena de guerra, panos ensangüentados por todo o quarto, e ele segurava meu filho. “Deixa ver”, - eu pedia - “é perfeito?”, perguntava, mas o olhar dele não me parecia um olhar de pai orgulhoso, parecia mais um olhar aflito, ele saiu do quarto com o bebê enroladinho e a parteira entrou, toda suada, quase tão exausta como eu, e dizia - “tem que ser forte menina” – e eu só queria saber se era perfeito, - “seu bebê não chorou, nasceu com o cordão enrolado no pescoço e não resistiu à falta de ar”.
Senti como se tivesse levado um soco no estômago, fiquei atônita, sem ação, mas não desmaiei, respirei fundo enquanto a parteira trazia um copo de água com açúcar, era mentira, só podia ser, como pode, senti meu filho por nove meses crescer, se movimentar, tomar conta de meu ventre e do meu coração e agora vem me dizer que é morto? Queria gritar, mas não consegui, queria chorar, não consegui e Joana segurava minha mão e dizia que eu era jovem, que teria muitos outros filhos, mas nada me consolava.
Quis levantar, mas ainda faltava-me força, quis pegar meu filho nos braços, mas só me diziam, não faz assim, é muito pior se comportar assim, mas eu queria vê-lo, olhar para seu rostinho, foi alguém com quem sonhei nesses últimos nove meses.
Trouxeram-me o corpo, pálido, já haviam limpado, e colocado uma roupa nele enquanto Antônio me disse, - “era uma menina”. Olhei com uma aflição no peito, uma vontade de ser forte, mas não consegui, não a peguei, pedi que a levasse.
Depois de chorar muito, resignei-me em minha dor, saí do quarto e ajudei meu marido a ajeitá-la em uma caixa de madeira que ele mesmo fez.
A tarde lentamente caía, fria, com aquele vento que já descrevi, ele pregou a tampa, me beijou e seguiu a pé para um vilarejo, onde havia o único cemitério da região, de caminhada seriam mais de três horas, hoje entendo por que não foi a cavalo! Não derramou uma lágrima na minha frente, penso que foram três horas de calvário, fora chegar na igreja para chamar o padre, pois nem delegado, nem escrivão, nem funerária.
Ainda hoje quando esses ventos de outubro tocam minha face, penso em minha filha, meu anjinho que não viveu, mas nos deu uma lição de amor e fé.



Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.

* (História baseada em fatos reais, com detalhes não verídicos, mas que usei para dar dramaticidade ao texto)

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sexta-feira, agosto 11, 2006

Alucinação - Homenagem ao amigo Aluisio Martins

Alucinação

Estava com a boca amarga, os olhos pesados, sem foco, acordei sem enxergar, tentei mexer as mãos, mas não as senti. A visão voltava aos poucos e tudo parecia distorcido, uma alucinação absurda. Aluísio estava do meu lado, com um sorriso torpe, de quem conseguiu o que queria, e ria-se. As cortinas pareciam voar, dizendo, “nós vimos o que fizeram, sabemos quem são vocês".
Sabia quem eu era, lembrava-me dele, via nossos corpos nus, mas não sabia onde exatamente estávamos, nem o que nos levara até lá. Piscava, e via Aluísio dormindo, vislumbrava asas nele, como se fosse um anjo, dormindo ali do meu lado, o quarto girava. Esfregava os olhos, na esperança de que se rendessem à realidade, mas só tinha vertigens.
Tentei me levantar, mas a cama parecia ter braços que me puxavam para si, meus pés pareciam pedras pesadas, que não podia carregar, não me sentia bem. Aliás, não me recordo de ter vivido algo parecido, sempre confiei em meus sentidos, e eles agora me abandonaram. Ouvia risadas do quarto ao lado, não sabia onde estava, e era inútil lutar, estava presa àquela cama. Os lençóis me aprisionavam, como braços fortes, uma canção incestuosa dominava minha pele, sussurrava em meu ouvido.
Queria gritar, talvez balbuciar alguma coisa para que Aluísio acordasse, e me dissesse algo que me fizesse despertar, mas era inútil, sentia-me amordaçada, e presa àquela alucinação.
Por um momento desisti, não pensei em mais nada, deixei a sensação me dominar, e senti um prazer profundo, inenarrável, daqueles que fazem perder todos os sentidos.
Percebi-me então, deitada em uma cama finamente coberta com rosas brancas e vermelhas. As vermelhas estavam em contato com meu corpo em chamas, e dilacerado pelos espinhos, que mais pareciam arame farpado, entravam pela boca, pelos ouvidos, pelos orifícios todos! As brancas pareciam sorrir e pulavam ao chão, no meio de uma canção fúnebre.
E ao acordar novamente, me vi em um canteiro de petúnias, e estavam em flor, e o som das abelhas era ensurdecedor, voavam por toda parte, e não me incomodavam, apenas pousavam tranqüilas sobre meu sexo, gentis, e iam embora, sem me incomodar. Perdi a noção do tempo, já não me afetavam mais as horas. Adormeci, mais uma vez.
Mais uma vez desperto, vejo-o tranqüilo, dormindo ao meu lado, beijo-o e espero que desperte, um beijo apaixonado e uma frase apenas.
“Vim apenas te buscar, espero não ter causado nenhum sofrimento".
E depois de ouví-lo minha alma se aquietou e deixei-me levar...


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terça-feira, agosto 01, 2006

O relojoeiro - Homenagem ao amigo Anderson Alcantara




Vivia naquela cidade desde que nasceu, herdou do pai a relojoaria, a profissão e as vistas cansadas. A cidade era pequena, tudo girava em torno daquela pequena praça, que abrigava um velho chafariz quebrado há décadas e alguns bancos onde os idosos jogavam damas, baralhos ou dados. A loja era bem localizada, ficava entre o único mercado e o correio, não era grande coisa, mas sustentava sua pequena família, mãe e irmão pequeno.
Aparentava ter mais idade, os óculos lhe davam um ar sério e catedrático, não sorria muito, isso porque não gostava de seus dentes, mas era pura cisma, não havia nada de errado com eles. Enquanto trabalhava sua mente borbulhava como as cachoeiras.
Conseguia viajar naquelas engrenagens minúsculas, sem contar das areias desérticas que passeavam de cima para baixo nas ampulhetas, que o faziam caminhar sobre o silêncio inquietante do tique-taque.
Anderson era calmo, como deveria ser, sua profissão tão delicada como suas mãos finas e precisas. Suaves os dedos pousavam sobre o mecanismo frágil e o alívio se fazia com a volta do bailado, do vai e vem da estrutura metálica que marcava prazos infinitos.
A única coisa que afetava sua rotina era a passagem diária, quase sempre pontual de uma moça, cabelos negros, um passo apertado, rápido.
Ele ouvia o toque-toque de seu sapato a metros de distância e corria para a porta do estabelecimento, só para vê-la passar. Conhecia o pai da moça, já levara um modelo raro de relógio de bolso para que restaurasse, herança de família. E quando a via passar lembrava-se daquele relógio de prata que poliu, e fez voltar a funcionar. Lindo, raro como ela. Poderia tocá-la como tocou o objeto.
Depois dos suspiros retomava seu trabalho, seus minutos corriam contra as horas, não era um passatempo, era o ganha pão, por vezes aquela música do tempo soava melodia para seus ouvidos, por vezes urrava pedindo quietude.
Daqueles movimentos nada sensuais das peças, via-se tocando aquela menina-moça, naquele ritmo, como dos ponteiros de segundos, sempre, sempre e assim os minutos se arrastavam como se fizesse sexo com ela, como se a tocasse profundo como as horas. Aquele som o afetava, as horas o afetavam eram longas demais para uma espera e naquele dia, a moça não passou. E por vários dias a esperou. E depois de mais de uma semana ele surpreendeu-se com ela dentro de sua loja, não sabia bem como se comportar, suas pernas tremiam com um olhar direto, então se esquivava.
─ Posso ajudar? – perguntou com a voz meio embargada.
─ Sim claro, meu noivo faz aniversário hoje. Não sei escolher bem o presente. Meu pai me deu dinheiro.
Anderson foi tomado por um sentimento corrosivo, destes cáusticos mesmo, que faz alguém atentar contra o outro com ódio voraz, tinha ciúmes daquele noivo. Aquele maldito podia possuí-la, enquanto para ele só sobrava a ânsia. Queria só tê-la, como mulher, não carecia presentes caros, nem mimos. Mas seria audácia dizer o que pensava. Mostrou então um modelo qualquer, mas não se deu ao silêncio.
─ Se fosse minha, já me bastaria. – disse quase sussurrando temeroso, mas lançara os dados de seu jogo secular, só teria aquela chance.
Como se não tivesse ouvido ela aceitou a escolha e pediu:
- Por favor, em um embrulho para presente!
- Claro! – respondeu desconcertado pelo seu atrevimento. Fez um laço para finalizar o pacote, providenciou uma sacola e entregou a e junto com um único afago. Ela saiu apressada.
Tomava mais uma vez seu trabalho, ocupava-se dele na intenção de esquecer o equívoco, mas como martelos replicantes, os segundos soavam em sua mente: “porque, porque?”
Muitos desses segundos, horas, dias se passaram, até que uma noite bateram na porta de sua casa, que ficava ao fundo da loja, com a tez sisuda o pai da moça a trazia pelo braço, raivoso e bufando dizia num tom de cobrança:
- Belise disse que fizera mal a ela, desde sua vinda aqui não come direito e nem quer mais noivar, pois fique com ela, que desonrou minha casa e meu nome!
A vida a afetava desde que as palavras do relojoeiro penetraram seus ouvidos cansados de falsas declarações, talvez por desejar outra vida para si, jogou no mundo seu pai verdades distorcidas, simulou ter se entregado ao relojoeiro e não ao homem que o pai escolhera para ela.
Sem entender o que acontecia, o rapaz a acolhe em seus braços, como uma dádiva, uma resposta à suas orações, toma-a para si, procura seus olhos. Ela o fita num pedido desesperado para que não a desminta, entendem-se neste olhar.
O pai sai sem esperar resposta. Esbravejando sozinho pela praça.
Naquela noite ele cederia a cama para ela, a deixaria com seus pensamentos, a conversa poderia deixar o dia seguinte chegar. Mas ele não conseguia dormir, ficou olhando aquela figura em sua cama, não tinha relógio em seu quarto, mas as horas passavam abandonadas, como as mãos dela.
Cada segundo sem tocá-la seria um martírio, queria tê-la e estava ali, tão perto, seu corpo latejava aquele nome; “Belise, Belise”, mas sua mente procurava entendê-la. Ela abriu os olhos, não estava dormindo, perguntou:
- Você me deseja? E sem dar tempo para que ele respondesse, tirou a blusa, desceu a saia e o beijou com fúria. Tomaram-se e se saciaram, seguidas vezes.
Não era um jogo, mas queria surpreendê-la como ela fez com ele, queria ser o caçador e não a caça. Era devoto, mas queria ser adorado, como aquela menina de corpo miúdo e tão forte. Colocou em cheque, numa só noite, a vida de três homens feitos. E daqueles três ele era o felizardo, que a possuíra com ternura, acariciara seus longos cabelos. Os seus pensamentos o acalantaram e trouxeram o sono.
Acordou num sobressalto, pensando que aquilo tudo não passara de um sonho, mas estava no chão, sinal que não era uma ilusão, mas na cama nem sinal dela.
─ Mãe! - chamava aflito- onde está Belise? Viu quando ela se levantou?
─ Quem é Belise? – pergunta a mãe, ignorando o desespero do filho.
─ Aquela moça que o pai veio deixar aqui ontem. –explicava num tom perturbado.
─ Não sei do que está falando meu filho, nada disso aconteceu ontem, está bem?
Sem entender Anderson pegou o relógio de bolso que herdara do pai dizendo:
─Não me espere para o almoço, vou procurar Belise.