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terça-feira, dezembro 19, 2006


Hoje vejo que escrevi muitas cartas para que me lesse, para entendesse cada vírgula, cada reticência, toda a interrogação. Desenhei céus azuis pintados em aquarelas para te presentear e fiz doces poemas de clamor para acreditar.
Leu-me sem segredo, mostrei-me sem medo, mas percebo que quanto mais dizia de mim, mais eu queria saber para poder te contar e me perdi em meus pontos finais e em meus silêncios de ignorância.
Como um livro folheado, encardido, amarelado, fui deixada de lado para que conhecesse outros mundos.
Minhas cartas existencialistas tomaram o vento em busca do esquecimento pálido e profundo e findaram-se numa gaveta qualquer.
Conheceu os infinitos horizontes, enquanto eu tinha a escuridão e o abandono. Mas já entendo que não importa como termine, nem com quem está agora. Seremos sempre eu e você. Sem rodeios, sem meias palavras, sem solto nó, sem notas desafinadas.
Minhas palavras antigas já não têm tanta força, nem o mesmo entusiasmo de outrora, mas também não me afetam mais.




DIREITOS AUTORAIS E A PROPRIEDADE INTELECTUALCopyright © 2006. É proibida a venda ou reprodução de qualquer parte do conteúdo deste site. Este texto está protegido por direitos autorais. A cópia não autorizada implica penalidades previstas na Lei 9.610/98.Convido você leitor, para que visite meu blog:http://dialeticadofrenesi.blogspot.com/

quarta-feira, novembro 29, 2006

Uma pequena fábula de amor




A bela se deixava levar pela angústia mais profunda de seu ser.
O que poderia fazer diante daquela avalanche que sempre a tomava as carnes e os pensamentos?
Era livre e estava tão presa em si, que por vezes perdia o controle.
Não sabia se abria seu coração ou suas pernas.
Abrir seus sentimentos mais profundos era doloroso, desgastante. Sabia que se o fizesse deixaria subir à superfície toda aquela baboseira sentimental, que negara todos aqueles anos. Já estava exausta.
Observaria, então, nauseada o debochar profano da fera. A besta sentiria-se reconfortada, mais poderosa e desfrutaria dela com um prazer opressor, possessivo e até punitivo.
Por outro lado, se abrisse as pernas, poderia esquecer por instantes suas inquietudes e aplacar o tremor de suas carnes.
Talvez sentisse seu ser revigorado, pois os gestos podem ser mais intensos que as palavras e ela queria apenas aquilo de seu lado negro. Mas em suas certezas, estava rodeada de dúvidas.
Percebia diariamente, que aquele sorriso que brotava do lado direito do seu rosto era repreendido pelo lado esquerdo, que teimava em ser sisudo e indiferente.
A bela acreditava ser liberta, mas estava amarrada pra sempre à fera. A segunda tinha uma prazer mórbido em subjugar a primeira.
Aquela era a maldição, ver-se predador e presa em uma só imagem refletida.




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quarta-feira, novembro 22, 2006

Ocaso


Queria ainda um resto de sol, mas o crepúsculo deu espaço a escuridão noturna. Nem sempre é o que desejamos e as coisas nem as pessoas devem permanecer. Na ponta da praia, crianças ainda brincam na areia quente e branca, constroem seus castelos de areia e divertem-se com o desmoronar de torres.

Aqui, os fósforos chamam a fumaça do cigarro e meus devaneios, o mar acaricia as pedras imóveis, presas, recolhidas, valeria a pena esse amor? Sei do nosso amor, como sei desse mar que venero, um de nós a pedra, outro a onda.

Por que tantos se vão sem fitar o ocaso? Teimam em enxergar o por vir, ou se iludem com um ensejo de que ele tardará?

Ondas cinzas revolvem-se, beijam a areia continuadamente, o som me acalma e te traz para meu colo, lenta, a lua sobe minguante que teima em iluminar nossos corpos e semblantes exaustos.

Chegamos almejar que fosse sempre assim, olhamos o infinito na mesma direção, mas por hora já me apetece ter-te aqui, pousada em meu peito febril. Já nem sei se me ama mais, se há uma réstia de luz do que fomos um dia, mas as incertezas permeiam todo entardecer.

Não entendo o querer, ainda que me esforce, permanece a dúvida, por que tanta fome, tanta sede? Sei apenas que me sacia e acalenta-me por vezes.

Mas nem todo desejo é aplacável, para tanto me refugio nas noites que me dão a insegurança, o voto cego na utopia e na esperança de rotina, sempre ao teu lado, sempre no meu peito.

E enquanto o fenecer não nos derrota, despentearei teus cabelos e deixarei seus dedos tomarem minha vida e sufocar minha alma, só me sinto vivo assim. E se essa dor não passar, se minha luxúria me arrastar por caminhos mais prazerosos, sei que partirei seu coração ou apenas te livrarei do martírio que é me suportar.



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quinta-feira, outubro 19, 2006

Sou tantas personas em um só corpo, que por vezes me olho no espelho e não me reconheço.
Já chorei de medo de mim mesma, por quantas vezes me acalentei, sufoquei meus gritos, não me permiti chorar, fugi dos que me amavam.
Tenho medo de todos, mas não temo ninguém mais do que temo a mim. Sou imprevisível, laica, absurda.
Sou um corpo que morre todo dia, para acordar bem noutro dia. Mas não me satisfaço com os amanhãs, uma voz quase inexistente grita lá do fundo, anime-se, enquanto muitas vozes fortes e ruidosas riem-se, desdenhando dela.
Por isso nem tente definir o que sou, se sou triste, se sou desesperada, se sou completa e verdadeiramente lúcida.
Nem eu sei de mim.
Sou a mistura de todas as minhas verdades, com todas as minhas mentiras, vícios e fraquezas.


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quinta-feira, outubro 12, 2006


Não vou dizer que sou movida pelo Mal, mas digam que não é mais divertido que o Bem. Não me vejo vestida de branco (até por que branco engorda) fazendo-me de anjo e tocando uma harpa, vejo me mais vestida de negro, com asas enormes e garras felinas, como as harpias, voando livre para fazer o que bem entender.
O Mal não tem muita regra, enquanto se for praticar o Bem terei que seguir uma imensidão delas e odeio obrigatoriedade, autoridade, diga-se de passagem, sou liberta, nasci sozinha e vou morrer assim, então neste intervalo quero mais é saber de mim, nada dessa história de morro por ti, morrerias por mim, blá, bla, blá. Isso pra mim é baboseira romântica e já saiu de moda faz tempo, sou minha.
Não morro por ninguém, até por que acredito que ninguém desperdiçaria sua vida por mim, nem quero.
Carrego só os meus fardos, que já são pesadíssimos, nem me preocupo com a vida alheia, por achar que já tenho problemas demais! O que comer, o que vestir?
O que posso dizer para uma, para que não morra de enfarte?
O que posso dizer a outra para que não cometa suicídio? E sem querer me preocupo. Não sou uma homicida ou uma mulher de todo ruim, contando que não me afetem, pois se mexerem comigo terão o troco em dose acentuada, e não é uma ameaça pura e simples, é uma advertência:
“Ministério da saúde adverte: Larissa Marques faz bem à saúde, quando amiga. Quando inimiga é Perséfone”.

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quarta-feira, setembro 06, 2006


Farrapo


Queria que aquilo terminasse logo, estava cansada, só conseguia pensar em todas as tarefas do dia seguinte. Ficava se perguntando se era ela quem passava por tudo aquilo, ou se um farrapo humano ali, jogado, puído, entregue, enquanto não quisessem tomar conhecimento dela, de suas fragilidades ou frustrações.
Sentia-se apenas um pedaço de carne usado e viajava em divagações existencialistas. Às vezes se mexia, para perceber-se ainda viva e para que não jogassem uma pá de cal por cima daquele corpo vazio.
Amordaçava todos os sentimentos num canto qualquer de sua mente, e os deixava ali, enclausurados. Por vezes eles berravam em agonia, choravam pedindo clemência, mas ela parecia inerte à vida.
Olhava o ventilador, que rodava enfadonho, no teto, será que ele não se cansava, mesma rotação, lenta, rotineira. Ela já estava entregue, não sabia mais como se esquivar dos duros golpes que sofrera.
Na cama, aqueles movimentos irritavam na profundamente, movimentos invasores, repetitivos, que deveriam ser de prazer, mas soavam-lhe como obrigação, então, calava-se e cedia, e cedia, e cedia.
E ao invés de fechar os olhos, ela fitava-o com ódio visceral, sabia que ele não tomara conhecimento dela e só se prendia aos seus desejos. Talvez se sentisse vitorioso, por ter sugado toda sua dignidade, por tê-la sufocado, domado sua personalidade forte, por completo.
Talvez se lembrasse de todas as mulheres e revivesse todas as sensações libidinosas, que tivera até ali. Por que ele não acabava com aquilo logo? Seu corpo todo molhado, transpirava fúria e desejo, rendido ao prazer extremo e almejava mais, e mais. Por que tinha o prazer de prolongar o que poderia ser feito em poucos minutos?
E o ventilador girava, naquele mesmo ritmo enfadonho, mas agora parecia produzir alguma brisa.
Virava-a como um boneco de molas, como uma marionete, sem vontade própria, e nem se dava conta disso, se refestelava dela, revirava os olhos, quase bailava, fazendo bom uso daquela migalha de gente que se transformara.
E por que ela aceitava aquela imposição, deveria provocar uma revolução, tomar de volta o que era seu por direito, de uma forma ou de outra aquilo acabaria, e quando chegasse ao fim, ambos deitariam, cada um pro seu lado, e quieta esperaria o outro dia chegar.


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segunda-feira, agosto 14, 2006

Noites de outono - Homenagem ao amigo Antônio Alves

Nestas noites frias de final de outono, lembro-me de minha vida, recordo-me de fatos, que até para mim que vivi, parecem inconcebíveis. Pairou em meu pensamento ao sentir esse vento frio, um acontecimento desse mesmo outono, mas ocorrido há quase cinqüenta anos, na Fazenda Nova Morada, onde passei a viver depois que me casei.
Era uma época difícil, quando as fazendas eram grandes latifúndios que separavam por quilômetros um vizinho de outro, e as famílias pela distancia se faziam cada vez menos unidas pelos laços afetivos. Mas naquela altura de minha história, já tinha me acostumado com a vida dura que a fazenda impunha, meu marido era dentista, mas tornara-se por vezes médico por necessidade, pois a cidade mais próxima ficava há dias de viagens, feitas ainda no carro de boi. Antes de me casar fiz um curso de enfermagem, e além do consultório dentário, tínhamos uma venda onde de quase tudo podiam encontrar os moradores e forasteiros que passassem por ali.
Grávida do meu primeiro filho foi necessário que Antônio encontrasse alguém para me auxiliar nos trabalhos domésticos, entrava em minha casa a minha maior companheira, Joana, uma mulata magra, franzina, e num primeiro momento ao deparar-me com sua figura, duvidei que conseguiria dar conta do trabalho pesado da roça. Mas quanto mais a minha barriga crescia, mais responsabilidade via naquela mulher de feição frágil e solidária, sempre fazia todo serviço da casa, e ainda tinha tempo para se sentar comigo na varanda da casa da sede para tecer comigo o enxoval do bebê. E o mais nobre é que percebia carinho naquela atitude, fazia com gosto, como se fosse uma mãe, ou uma irmã me ajudando.
Passaram-se os dias, os meses, e finalmente sentia as dores, que a cada momento ficavam mais fortes, me lembro daquela dor, a primeira, e todas as outras que vieram em seguida, a parteira vindo apressada, mandando ferver a água, queimar a tesoura, a correria de Antônio, com aqueles olhos azuis esbugalhados de desespero, a pressa de Joana em obedecer as ordens da parteira. E eram dores intermináveis, e o vento gélido já soprava aumentando a sensação de dor e contração dos músculos, como era muito jovem, pensava que aquele seria meu último dia na terra, ai como doía!
A parteira mandava com uma voz quase autoritária, “faz força menina”, mas já não tinha mais de onde tirá-la, desfaleci por um momento, e ao retomar meus sentidos Antônio já estava no quarto que mais parecia uma cena de guerra, panos ensangüentados por todo o quarto, e ele segurava meu filho. “Deixa ver”, - eu pedia - “é perfeito?”, perguntava, mas o olhar dele não me parecia um olhar de pai orgulhoso, parecia mais um olhar aflito, ele saiu do quarto com o bebê enroladinho e a parteira entrou, toda suada, quase tão exausta como eu, e dizia - “tem que ser forte menina” – e eu só queria saber se era perfeito, - “seu bebê não chorou, nasceu com o cordão enrolado no pescoço e não resistiu à falta de ar”.
Senti como se tivesse levado um soco no estômago, fiquei atônita, sem ação, mas não desmaiei, respirei fundo enquanto a parteira trazia um copo de água com açúcar, era mentira, só podia ser, como pode, senti meu filho por nove meses crescer, se movimentar, tomar conta de meu ventre e do meu coração e agora vem me dizer que é morto? Queria gritar, mas não consegui, queria chorar, não consegui e Joana segurava minha mão e dizia que eu era jovem, que teria muitos outros filhos, mas nada me consolava.
Quis levantar, mas ainda faltava-me força, quis pegar meu filho nos braços, mas só me diziam, não faz assim, é muito pior se comportar assim, mas eu queria vê-lo, olhar para seu rostinho, foi alguém com quem sonhei nesses últimos nove meses.
Trouxeram-me o corpo, pálido, já haviam limpado, e colocado uma roupa nele enquanto Antônio me disse, - “era uma menina”. Olhei com uma aflição no peito, uma vontade de ser forte, mas não consegui, não a peguei, pedi que a levasse.
Depois de chorar muito, resignei-me em minha dor, saí do quarto e ajudei meu marido a ajeitá-la em uma caixa de madeira que ele mesmo fez.
A tarde lentamente caía, fria, com aquele vento que já descrevi, ele pregou a tampa, me beijou e seguiu a pé para um vilarejo, onde havia o único cemitério da região, de caminhada seriam mais de três horas, hoje entendo por que não foi a cavalo! Não derramou uma lágrima na minha frente, penso que foram três horas de calvário, fora chegar na igreja para chamar o padre, pois nem delegado, nem escrivão, nem funerária.
Ainda hoje quando esses ventos de outubro tocam minha face, penso em minha filha, meu anjinho que não viveu, mas nos deu uma lição de amor e fé.



Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.

* (História baseada em fatos reais, com detalhes não verídicos, mas que usei para dar dramaticidade ao texto)

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sexta-feira, agosto 11, 2006

Alucinação - Homenagem ao amigo Aluisio Martins

Alucinação

Estava com a boca amarga, os olhos pesados, sem foco, acordei sem enxergar, tentei mexer as mãos, mas não as senti. A visão voltava aos poucos e tudo parecia distorcido, uma alucinação absurda. Aluísio estava do meu lado, com um sorriso torpe, de quem conseguiu o que queria, e ria-se. As cortinas pareciam voar, dizendo, “nós vimos o que fizeram, sabemos quem são vocês".
Sabia quem eu era, lembrava-me dele, via nossos corpos nus, mas não sabia onde exatamente estávamos, nem o que nos levara até lá. Piscava, e via Aluísio dormindo, vislumbrava asas nele, como se fosse um anjo, dormindo ali do meu lado, o quarto girava. Esfregava os olhos, na esperança de que se rendessem à realidade, mas só tinha vertigens.
Tentei me levantar, mas a cama parecia ter braços que me puxavam para si, meus pés pareciam pedras pesadas, que não podia carregar, não me sentia bem. Aliás, não me recordo de ter vivido algo parecido, sempre confiei em meus sentidos, e eles agora me abandonaram. Ouvia risadas do quarto ao lado, não sabia onde estava, e era inútil lutar, estava presa àquela cama. Os lençóis me aprisionavam, como braços fortes, uma canção incestuosa dominava minha pele, sussurrava em meu ouvido.
Queria gritar, talvez balbuciar alguma coisa para que Aluísio acordasse, e me dissesse algo que me fizesse despertar, mas era inútil, sentia-me amordaçada, e presa àquela alucinação.
Por um momento desisti, não pensei em mais nada, deixei a sensação me dominar, e senti um prazer profundo, inenarrável, daqueles que fazem perder todos os sentidos.
Percebi-me então, deitada em uma cama finamente coberta com rosas brancas e vermelhas. As vermelhas estavam em contato com meu corpo em chamas, e dilacerado pelos espinhos, que mais pareciam arame farpado, entravam pela boca, pelos ouvidos, pelos orifícios todos! As brancas pareciam sorrir e pulavam ao chão, no meio de uma canção fúnebre.
E ao acordar novamente, me vi em um canteiro de petúnias, e estavam em flor, e o som das abelhas era ensurdecedor, voavam por toda parte, e não me incomodavam, apenas pousavam tranqüilas sobre meu sexo, gentis, e iam embora, sem me incomodar. Perdi a noção do tempo, já não me afetavam mais as horas. Adormeci, mais uma vez.
Mais uma vez desperto, vejo-o tranqüilo, dormindo ao meu lado, beijo-o e espero que desperte, um beijo apaixonado e uma frase apenas.
“Vim apenas te buscar, espero não ter causado nenhum sofrimento".
E depois de ouví-lo minha alma se aquietou e deixei-me levar...


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terça-feira, agosto 01, 2006

O relojoeiro - Homenagem ao amigo Anderson Alcantara




Vivia naquela cidade desde que nasceu, herdou do pai a relojoaria, a profissão e as vistas cansadas. A cidade era pequena, tudo girava em torno daquela pequena praça, que abrigava um velho chafariz quebrado há décadas e alguns bancos onde os idosos jogavam damas, baralhos ou dados. A loja era bem localizada, ficava entre o único mercado e o correio, não era grande coisa, mas sustentava sua pequena família, mãe e irmão pequeno.
Aparentava ter mais idade, os óculos lhe davam um ar sério e catedrático, não sorria muito, isso porque não gostava de seus dentes, mas era pura cisma, não havia nada de errado com eles. Enquanto trabalhava sua mente borbulhava como as cachoeiras.
Conseguia viajar naquelas engrenagens minúsculas, sem contar das areias desérticas que passeavam de cima para baixo nas ampulhetas, que o faziam caminhar sobre o silêncio inquietante do tique-taque.
Anderson era calmo, como deveria ser, sua profissão tão delicada como suas mãos finas e precisas. Suaves os dedos pousavam sobre o mecanismo frágil e o alívio se fazia com a volta do bailado, do vai e vem da estrutura metálica que marcava prazos infinitos.
A única coisa que afetava sua rotina era a passagem diária, quase sempre pontual de uma moça, cabelos negros, um passo apertado, rápido.
Ele ouvia o toque-toque de seu sapato a metros de distância e corria para a porta do estabelecimento, só para vê-la passar. Conhecia o pai da moça, já levara um modelo raro de relógio de bolso para que restaurasse, herança de família. E quando a via passar lembrava-se daquele relógio de prata que poliu, e fez voltar a funcionar. Lindo, raro como ela. Poderia tocá-la como tocou o objeto.
Depois dos suspiros retomava seu trabalho, seus minutos corriam contra as horas, não era um passatempo, era o ganha pão, por vezes aquela música do tempo soava melodia para seus ouvidos, por vezes urrava pedindo quietude.
Daqueles movimentos nada sensuais das peças, via-se tocando aquela menina-moça, naquele ritmo, como dos ponteiros de segundos, sempre, sempre e assim os minutos se arrastavam como se fizesse sexo com ela, como se a tocasse profundo como as horas. Aquele som o afetava, as horas o afetavam eram longas demais para uma espera e naquele dia, a moça não passou. E por vários dias a esperou. E depois de mais de uma semana ele surpreendeu-se com ela dentro de sua loja, não sabia bem como se comportar, suas pernas tremiam com um olhar direto, então se esquivava.
─ Posso ajudar? – perguntou com a voz meio embargada.
─ Sim claro, meu noivo faz aniversário hoje. Não sei escolher bem o presente. Meu pai me deu dinheiro.
Anderson foi tomado por um sentimento corrosivo, destes cáusticos mesmo, que faz alguém atentar contra o outro com ódio voraz, tinha ciúmes daquele noivo. Aquele maldito podia possuí-la, enquanto para ele só sobrava a ânsia. Queria só tê-la, como mulher, não carecia presentes caros, nem mimos. Mas seria audácia dizer o que pensava. Mostrou então um modelo qualquer, mas não se deu ao silêncio.
─ Se fosse minha, já me bastaria. – disse quase sussurrando temeroso, mas lançara os dados de seu jogo secular, só teria aquela chance.
Como se não tivesse ouvido ela aceitou a escolha e pediu:
- Por favor, em um embrulho para presente!
- Claro! – respondeu desconcertado pelo seu atrevimento. Fez um laço para finalizar o pacote, providenciou uma sacola e entregou a e junto com um único afago. Ela saiu apressada.
Tomava mais uma vez seu trabalho, ocupava-se dele na intenção de esquecer o equívoco, mas como martelos replicantes, os segundos soavam em sua mente: “porque, porque?”
Muitos desses segundos, horas, dias se passaram, até que uma noite bateram na porta de sua casa, que ficava ao fundo da loja, com a tez sisuda o pai da moça a trazia pelo braço, raivoso e bufando dizia num tom de cobrança:
- Belise disse que fizera mal a ela, desde sua vinda aqui não come direito e nem quer mais noivar, pois fique com ela, que desonrou minha casa e meu nome!
A vida a afetava desde que as palavras do relojoeiro penetraram seus ouvidos cansados de falsas declarações, talvez por desejar outra vida para si, jogou no mundo seu pai verdades distorcidas, simulou ter se entregado ao relojoeiro e não ao homem que o pai escolhera para ela.
Sem entender o que acontecia, o rapaz a acolhe em seus braços, como uma dádiva, uma resposta à suas orações, toma-a para si, procura seus olhos. Ela o fita num pedido desesperado para que não a desminta, entendem-se neste olhar.
O pai sai sem esperar resposta. Esbravejando sozinho pela praça.
Naquela noite ele cederia a cama para ela, a deixaria com seus pensamentos, a conversa poderia deixar o dia seguinte chegar. Mas ele não conseguia dormir, ficou olhando aquela figura em sua cama, não tinha relógio em seu quarto, mas as horas passavam abandonadas, como as mãos dela.
Cada segundo sem tocá-la seria um martírio, queria tê-la e estava ali, tão perto, seu corpo latejava aquele nome; “Belise, Belise”, mas sua mente procurava entendê-la. Ela abriu os olhos, não estava dormindo, perguntou:
- Você me deseja? E sem dar tempo para que ele respondesse, tirou a blusa, desceu a saia e o beijou com fúria. Tomaram-se e se saciaram, seguidas vezes.
Não era um jogo, mas queria surpreendê-la como ela fez com ele, queria ser o caçador e não a caça. Era devoto, mas queria ser adorado, como aquela menina de corpo miúdo e tão forte. Colocou em cheque, numa só noite, a vida de três homens feitos. E daqueles três ele era o felizardo, que a possuíra com ternura, acariciara seus longos cabelos. Os seus pensamentos o acalantaram e trouxeram o sono.
Acordou num sobressalto, pensando que aquilo tudo não passara de um sonho, mas estava no chão, sinal que não era uma ilusão, mas na cama nem sinal dela.
─ Mãe! - chamava aflito- onde está Belise? Viu quando ela se levantou?
─ Quem é Belise? – pergunta a mãe, ignorando o desespero do filho.
─ Aquela moça que o pai veio deixar aqui ontem. –explicava num tom perturbado.
─ Não sei do que está falando meu filho, nada disso aconteceu ontem, está bem?
Sem entender Anderson pegou o relógio de bolso que herdara do pai dizendo:
─Não me espere para o almoço, vou procurar Belise.

quarta-feira, julho 12, 2006

"Série Bonecas de Papel": Caroline


Caroline

Por muito tempo reservei-me ao silêncio, nunca gostei de falar muito sobre minhas divagações, sobre minhas preferências, sobre meus interesses. Sempre que me atrevia a fazê-lo, me consideravam uma perdida. Não que seja uma mulher à frente de meu tempo, nem tão pouco minhas visões sobre o mundo sejam diferente da maioria das outras pessoas, a verdade é uma só, olham-me torto por gostar de meninas.
Bem, acho que me interpretei mal, não tenho nada contra meninos, nem tão pouco contra sua libido exagerada, e a falta controle, quando os assuntos são sexuais. Não vou generalizar, pois já conheci muitos homens que faziam sexo tão bem quanto uma mulher, mas a maioria acha que dizer “gostosa”, a uma desconhecida que passa na rua, é um elogio, não uma grosseria, e que algumas respondem, mesmo que caladas: “vai tomar no cu, filho da puta, nunca viu bunda não?”
Minha mãe, carola, daquelas que não soltava da barra da saia do padre, mal percebia que ele também era diferente, como eu. Um dia ela me flagrou dando um selinho de despedida em uma colega de classe, ameaçou-me com duas bofetadas e com a pergunta mais hipócrita que já ouvi:
“_ Você não tem vergonha na cara?”
Como se fosse vergonhoso gostar de minha colega e ser beijada por ela.
Aprendi desde muito cedo a ter respeito pelos outros, coisas do tipo, não importa a raça, a religião, importa sim a índole da pessoa, mas na realidade, aprendi a hipocrisia, pois esse sentimento é comum no ser humano.
Será que a opção sexual de alguém fere o direito de outras pessoas?
Outro dia vi no Jornal Nacional que um policial prendeu duas meninas dentro do campus da USP, no refeitório, por estarem se beijando na boca, uma sentada no colo da outra. Pergunto-me se fosse um casal “convencional” teriam sido detidos? Creio piamente, que não.
Quem deveria ser detido era o milico, que além de ser preconceituoso, abusou do seu poder para demonstrar seu preconceito.
Não acredito, nunca vi e nem vivi coisa mais linda que duas mulheres se amando, há uma aura, uma delicadeza, uma transcendência única, de espíritos que se entendem profundamente.
Quem dera, hoje minha querida Caroline, Carol, como te chamava ao pé do ouvido, tivesse quebrado meu silêncio provinciano antes, queria não ter sido covarde, não ter fugido do amor que tinha por ti, nem cedido aos caprichos de minha mãe.
Hoje, trago-te rosas vermelhas, não mais brancas, como sempre fiz, pois tenho uma confissão a fazer-te, encontrei alguém que me ama, assim como me amou um dia. Mas sou outra pessoa, diferente daquela criança que era, quando nos conhecemos, quando fazíamos amor no banheiro das meninas.
Só agora compreendo a força que brota de um coração dilacerado, só agora entendo seu ato de desespero e a sua coragem. Todos os anos, nesta mesma data, eu venho, e a cada ano que se passava, menos me entendia, e mais compreendia a força que de empurrou pra esse abismo. Ao ler “Aqui jaz uma moça que amou, que chorou, que lutou e desistiu”, revolto-me, pois sabemos que isso não é verdade.
Pichei no mármore frio, com tinta vermelha “Aqui jaz uma moça que soube amar e ensinou-me o amor!”


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terça-feira, julho 11, 2006

A traição

Com a faca na mão ela soltava seus desaforos, dizia aos berros:
─ Ainda te mato, infeliz! Desde que veio morar aqui me trai, desgraçado! Um dia hei de cortar seu pescoço e vou ficar olhando se debater, infeliz, ah se vou!
Enfurecida, começou a amolar a faca.
─ Como é que consegue fugir para casa da vizinha sem que eu perceba? Ai, que ódio, é hoje que me paga, Teteu ! Irá pagar por todos os insultos que tenho que ouvir, as risadinhas de canto de boca que suporto! Sem falar das reclamações do marido da vizinha. Bem que eu podia deixá-lo morrer nas mãos do Álvaro, bem que ele merecia o prazer de te matar!
Resmungava enquanto separava os ingredientes para o jantar, descascou uma cebola, duas, e pôs se a picá-las, começou a chorar compulsivamente, não sabia se por Teteu ou pelas cebolas que faziam arder os olhos.
─ Trato-te tão bem, mal agradecido! Dou-te tudo de melhor, tenho cuidados e até carinho. E ainda assim vai para a casa da vizinha, não vou me conformar, te conheço desde pequeno, não deveria se comportar assim!
Saiu para o quintal, com a dita faca, que brilhava de tão afiada, o galo já estava debaixo do balaio, mas Helena não sabia mais se queria matá-lo, era desobediente, trazia tantos aborrecimentos, mas ainda assim tinha carinho pelo bicho. Com piedade cortou o pescoço do coitadinho e o serviu ao molho pardo no jantar.

sexta-feira, julho 07, 2006

"Série Bonecas de Papel": Vera


Vera

Não me pergunte porque, mas acordo todos os dias com a sensação de que há uma arma apontada para minha cabeça, na testa, bem no meio dos olhos. É uma alucinação que me persegue desde menina, e por causa dela vejo sempre o outro, seja quem for, como um possível inimigo.
Aprendi, desde muito pequena, a não confiar nas pessoas. O que tenho consegui com muito esforço, nada pra mim caiu do céu, acredito que de lá, só os castigos pela vida que levo.
Criei uma barreira que me protege do mundo, sei como magoar, ofender, humilhar, mas sou imune ao externo, o mundo não me afeta mais. Cansei de tentar entender os “porquês”, e me preocupo agora é com os “quandos”, “quantos”...
Talvez esteja pensando que sou uma “menina má”, e sou! Embora mamãe tenha me ensinado que meninas boas vão para o céu, e que conseguirão a paz eterna! Mas deixava meu padrasto visitar meu quarto, talvez eu gostasse das visitas noturnas.
Quando resolvi quebrar meu silêncio, levei uma bofetada e tive minhas roupas todas jogadas no meio da rua, como se fosse um cachorro, não parte de sua própria carne, sangue do seu sangue! Mas tudo bem, a partir daí, manipular as pessoas tornou-se uma regra.
Aprendi uma lição importante, que ser sincera não é o melhor caminho, escolher a hora de ser sincera, sim. Depois disso, a senhora da mercearia, quase de frente à minha casa me acolheu, cedeu um quartinho do fundo pra dormir, dizendo ser velha, viúva, cansada e que precisava de ajuda e companhia.
Vivi com ela por vários anos, ela sim, me tratava com respeito e dignidade, trabalhava como uma escrava, mas tinha um salário. Sei que Dona Milu me amava, mimava-me, comprando vestidos novos, perfumes, como uma filha que não teve, mesmo com tanto carinho não confiava nela, já não confiava mais em ninguém.
E numa bela manhã de domingo, encontro a pobre morta, em sua cama, teve morte digna, foi a única pessoa boa que conheci, os herdeiros apareceram, fui despejada. Mais uma vez, sozinha, mas agora com minhas economias e minha experiência, poderia recomeçar.
Nesse meu recomeço fiz uma promessa, que venderia ao mundo cada sorriso meu, pelo preço mais caro que pudessem pagar, até chegar onde queria. E cumpro minha promessa. Não sei o que é o amor, sei o que é a dor, e o vil metal. Ardo em prazeres falsos, para valer mais, tiro até o último vintém de quem passa pelo meu caminho. E se tenho oportunidade derrubo, destruo, aniquilo, por simples prazer, acho que a forma que encontrei de compensar minhas mazelas.
Sei que há muito mais que isso que vivo, mas sou jovem, terei tempo de desfrutar tudo que não tive oportunidade, mas enquanto não posso alcançar o que sonho pra mim, devoto meus dias ao “deus do dinheiro”, entrego-me aos desejos dos outros e renego minha própria existência.
Talvez depois de ler meu relato, tenha pena de mim, não se engane, manipulei você também.


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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sábado, julho 01, 2006

o encontro III

O encontro (parte III)

Não que eu estivesse mentindo, dissimulando ou coisa parecida, ao que me cabe em entendimento as mulheres são perversas mesmo. Trazemos conosco a síndrome do poder, da dominação, é prazeroso ter o comando da situação. Culpamos-nos, nos ferimos, nos matamos sempre, para que talvez amanhã sejamos diferentes do que somos hoje.
Mudar é uma constante somos como camaleões, lulas, polvos e outros animais que se camuflam para se proteger. Não quis ver Sig sofrer, só queria racionalizar suas reações diante do que não teríamos nunca, mas diante da descoberta de uma possibilidade de nos machucarmos, decidimos romper.
Hoje todos meus atos são claros pra mim, desde o amor por Sig, até o banho no Danúbio, tudo é lógico, agora.
Eu me disfarcei, me feri e no fim fugi como pude de meus predadores naturais, mesmo sabendo, que um dia, seria apanhada por um deles e que minha corrida era mais contra mim, contra o que sentia por ele, do que contra meus inimigos.
Mas não quis me esconder dele, lembro-me do esforço para continuar ali, mesmo sabendo que seria doloroso dar-me por vencida e depois de tombada pelo desejo de minhas próprias entranhas, me vi só como sempre fui.
Assim, mesmo permitindo que Sig ficasse comigo um bom tempo, desfazendo as amarras que a sociedade me impunha, libertando-me para uma vida plena e moderna, trazia comigo um pavor incontrolável de perde-lo, de perder o controle sobre mim mesma, perder a sanidade.
Não rezei a cartilha de mãe, que e mesmo morta ainda tentava me dominar. Não sei se me amava e me protegia, ou se me odiava e me privava de tudo o que mais quis. Por vezes sonhava com ambos conspirando contra mim.
Mas fui mais forte que ela e passei a ignorar as pessoas que me rodeavam. E Sig ao meu lado, sustentando-me com seu afeto, cuidando de mim. Mas não me adaptei, nunca me adaptarei à sociedade, não o culpo por ter tentado, mas meus padrões são diferentes da maioria das mulheres dessa era.
Jamais me esquecerei do fato de ter perdido a memória, mas talvez aquilo fosse necessário. Histeria, ato falho, amnésia temporária, como saber?
O certo é que mudei de atitude pouco depois de ver meu amado, naquela manhã ensolarada em Viena, após nossa longa caminhada. Recordo-me de entrar em um café e pedir todos os licores. Embriaguei-me como nunca. Andei sem rumo, até encontrar-me às margens do Danúbio, e ao som de “Vozes da Primavera” dancei com ele, me despi de minhas anáguas, de meu espartilho, que roubaram a infância e o fôlego, entregando-me sem culpa, inteira.
Voltei a ser menina, enquanto o mundo rodopiava, os sinos dobravam, alguns passantes riam, outros paravam para olhar, eu me deixava levar, sentindo o frescor da água me invadir e como era bom não ter o peso das anáguas!
Assim depois de libertar-me de meus medos fiquei exausta, um descuido, um escorregão, uma queda e não me recordo de como acabei no hospital. Sei que estava cansada daquela casca pesada que carregava comigo, o banho me livrou por alguns instantes e Sig me ajudou por muito tempo. Mesmo estando longe dali, naquele momento, suas palavras me incentivavam, me permitiam ser eu e deixei-me levar pela correnteza.
Aprendi que é inútil lutar contra forças maiores que eu, mas que vale lutar pelo que acredito e ao acreditar, o impossível pode tornar-se real, mesmo em sonho, ou em um simulacro.
Ao sair do hospital, fui para casa, queimei todo meu enxoval, numa revolta contra meu passado fútil, não queria mais perder meu tempo com coisas inúteis, queria meu tempo para ser feliz. Encontrei um bom emprego, onde ganhava o suficiente para viver e estudar e deixei a clausura que tia Milu me impunha.
Agora compreendia o que minha mãe passou, mas a pobre não teve forças pra lutar, escolheu o caminho mais curto e achou melhor ou mais fácil, se matar.
Compreendo melhor o que se passa aqui, em meu íntimo, entender que Sig e eu nos amamos e será assim enquanto vivermos. Mas nos libertamos, não quisemos mais amarras, eu não quis mais jaulas, um erro, como saber? E mesmo longe dele, sinto-me acorrentada ao mesmo sentimento que nos uniu. Aquele encantamento de outrora se faz saudade e persistência para continuar distante. Ainda me escreve longas cartas, conta de seu interesse pelo desconhecido mundo da psique e me surpreendo encontrando-me em cacos de suas pacientes.
Mas já não assina mais “de seu Sig”, assina apenas “Sigmund Freud”.
E mesmo sabendo que posso mudar tudo com um simples sim e um sorriso, pois meu sorriso compra tudo, prefiro comandar minha vida, longe de Sig. E de alguma forma ainda caminho na nossa praça numa Viena em primavera, ouvindo “As vozes da Primavera” dentro do meu coração e faço com que nosso encontro seja eterno, congelado nos passos lentos daquele passeio.

o encontro II

O encontro (parte II)

Acordei com um gosto amargo na boca, não me lembrava de ter dormido e aquele lugar não podia ser meu quarto. A cabeça girava, estava confusa, atordoada, com dores por todo o corpo.
Abri e fechei os olhos incontáveis vezes, na tentativa alucinada de ter a vaga lembrança de quem era, e o que fazia ali, em vão.
Tinha o cheiro de primavera impregnado em minha pele e alma e parecia dançar uma valsa bêbada, que tocava lenta e o cravo parecia desafinado, engasgado com suas notas, quase num pedido de socorro.
Passei minhas mãos sobre o rosto, senti um corte na testa, parecia febril, levantei o lençol, um hematoma no joelho e uma escoriação no braço. Não havia um espelho ali, Talvez se visse meu rosto, ver meu reflexo no vidro e ver onde estava, mas já era noite e não conseguia chegar à janela.
Não me lembrava do que causara aquele estrago todo. Onde estariam os meus? Por alguns segundos senti-me uma indigente, mas esse sentimento não me tomou por muito tempo, a curiosidade de saber de mim era maior que qualquer outro sentimento. Estava mal vestida e despenteada e isso era um ultraje, sempre fui tão vaidosa, aquilo me parecia uma afronta, uma brincadeira de mau gosto.
O relógio fazia um barulho estranho, e os ponteiros não saíam do lugar, o ponteiro dos segundos dava pulos, no mesmo lugar. Estaria quebrado ou eu me encontrava em algum lapso temporal?
Agoniada, tentei me levantar, mas não tinha forças e daquele jeito só me machucaria mais.
De algum lugar lá fora, alguém cantava, com uma voz destoante, como se sussurrasse uma canção de ninar, baixo, bem baixo...
“Cante uma canção enfadonha
Dessas muito medonhas
E veja se desperta do pesadelo que sonha
Cante o copo com água, o laxante!
O descongestionante, o calmante!
Cante para matar o tédio
Que contra a vida
Não há remédio
remédio
Que não seja a sorte
Que não seja a morte”
Aquela maldita música fazia com que minha cabeça rodasse ainda mais, precisava de um analgésico, algo que aplacasse minhas dores emocionais, estava só, abandonada, e aquele cheiro de primavera já me deixava enjoada e mesmo assim, adormeci.
_Querida, querida, que loucura foi essa?- dizia alguém baixinho, parecia me tirar de um transe profundo – Querida, acorde!
Ao abrir os olhos, eu deparei-me com um homem, jovem, bonito, bem vestido e ao encara-lo, senti-me invadida, feia, tentei cobrir o que pude, mas ele estava sentado sobre o lençol.
_Querida, não fique assustada, se te incomodo posso deixa-la sozinha, por alguns minutos, até se recompor.
Peguei firme em sua mão, não poderia deixa-lo ir, como descobriria quem era e o que fazia ali? Pedi, num gesto desesperado, que não me deixasse só.
_Como cheguei aqui? O que aconteceu comigo? – não queria demonstrar meu desespero, nem a extensão de meu esquecimento, não consegui disfarçar.
Com um gesto gentil, passou a mão sobre minha testa.
_Está febril, é melhor descansar! – agora ele não conseguiu disfarçar o desespero.
Não descansaria enquanto tudo não estivesse bem claro pra mim, a começar de quem era.
_Só quero saber o que faço aqui, o que acontece.
Ajeitou meu travesseiro, ficando bem próximo, seus braços quase me tocavam, seus olhos pairavam sobre o decote da camisola, demonstrava desejo por mim. Talvez pudesse me aproveitar disso, resolvi arriscar.
_O culpado disso tudo é você! – não tinha idéia do que dizia, mas podia dar certo e talvez fosse mesmo culpa dele, tudo aquilo, tinha necessidade de encontrar um culpado.
_Não creio que seja minha culpa, querida! – sorriu – Essas coisas acontecem, entendo sua atitude, mas você deveria ter sido mais cautelosa. Isso sim e eu não percebi seus sinais. Aí reside minha culpa.
_Não tenho me cuidado? Como pode dizer isso? Nem me imaginava e nem me sentia doente. Ri quase constrangida, na tentativa de dissimular minha ingrata surpresa.
_Creio que estava confusa e ainda está! Seu comportamento estava diferente ontem, seu corpo deu muitos sinais, poderia ser difícil pra eu perceber, mas pra você não. O cansaço ao caminhar, as tonturas, o mal estar.
O chão e o quarto giravam como o um carrossel, cheio de luzes sombras à sua volta, perdi o eixo. Ele esfregava meus pulsos com força, na tentativa de que eu permanecesse acordada, mas fui sumindo aos poucos, até desfalecer.
Quando acordei, ainda estava comigo, acariciava meus cabelos e punha compressas de água em minha testa. Agora tinha certeza do nosso envolvimento, algo de alguma forma, nos unia.
_Trate de ficar boa logo, temos um trato, lembra? Dizia ele olhando para a compressa dentro da bacia, e sorrindo.
_Temos um trato? Não me lembro de trato algum! Temos?
Continuou olhando para a compressa, torceu e colocou sobre minha testa.
_Talvez não tenha dividido todos os meus pensamentos com você, mas creio que é chegado o momento.
_Ah, claro, - eu debochava – falar com uma moribunda em seu leito de morte é mais fácil!
As palavras saíram dessa vez sem que eu as escolhesse. Ele ria de mim, percebia que não era a única que confabulava.
_A febre está cedendo, - disse puxando o cordão preso em sua casaca e ao abrir o relógio explicou que tinha trabalho por fazer – volto antes do anoitecer. Num gesto automático olho para o relógio da parede, ainda parado, marcava dez para duas e o ponteiro dos segundos sempre sobre o doze, sempre tentando sair, preso naquele segundo infindável.
Então, beijou-me a mão e se abaixou para me beijar a face, mas apenas sussurrou em meu ouvido:
_Temos um trato e se esqueceu, faça o favor de lembrar!
Quem era aquele homem que mexia tanto comigo?
Chamou a enfermeira para me acompanhar e foi embora, pelo menos não ficaria mais sozinha.
Depois de alguns segundos ele voltou.
_Querida, eu não gosto de ficar esperando e hoje, passei a manhã te esperando na praça, não faça mais isso!
Dessa vez beijou-me a face e saiu correndo, dava pra ouvir suas gargalhadas bem depois de ter deixado o quarto. E como para aquele momento não fugisse, segurei o seu beijo com as duas mãos e meu coração estava calmo, aquele desconhecido tinha o poder de me acalentar os medos, as angústias.
A enfermeira era uma senhora de meia idade, olhava-me nos olhos, sisuda, sempre com as mãos frias, mas cuidava de mim com carinho. Anotava tudo, desde os remédios, refeições, media minha temperatura. Será que era assim com todos os pacientes do hospital, era tão quieta, que às vezes me assustava, eu não consigo ficar calada muito tempo, como ela conseguia sustentar aquele silêncio, parecia-me tortura.
O tempo parecia estar estacionado como as horas do relógio na parede.
Sentia vontade de sair correndo, mas queria poder me lembrar, desejava tantas coisas que me perdia nos meus anseios. E sentia-me presa naquele segundo infinito. Minhas vísceras estremeciam, o pavor me sufocava, a febre só aumentava, estava sem ar, queria gritar, mas poderiam tomar-me como louca.
E poderia ser esse meu mal, porque não me lembrava de nada, a pancada na cabeça poderia ter causado o esquecimento. Tive a nítida impressão de estar acorrentada em um lugar escuro, com uma janela inalcançável, por onde entrava uma luz amarela, que iluminava a mim, baratas, ratos, lacraias, sujeira por toda parte. Queria chamá-lo, mas estava amordaçada.
_Tente voltar criança, - uma voz me dizia – tente voltar!
Lentamente voltava do pesadelo, estava tendo alucinações. E alguém do lado de fora do quarto cantava a mesma canção. Quem era aquela mulher?
_Sou sua Tia Milu, sou sua única família, não se lembra, criança? – dizia, tinha cabelos cinza e olhos amendoados, quase doces - Irmã de seu pai, não se lembra?
E eu não me recordava dela.
_A enfermeira me disse delirou por conta da febre, que gritava, chorava e anotou muito do que disse, talvez queira ler, parece confusa. Entregou-me um bloco de papel, com várias frases e palavras sem sentido, soltas. Talvez aquilo pudesse me abrir alguma porta ou me faria lembrar de tudo.

o encontro I

O encontro (parte I)

Sig aproximou-se sem pressa, sem me olhar, veio devagar, contemplando as árvores rodeadas de flores e pedras do jardim da praça. Sentia-me estranha, lembrava-me da primeira vez que o vira, sentado na confeitaria, olhava-o como a um estrangeiro que acaba de chegar, tomada por um medo íntimo e curiosidade incontrolável. Era invadida agora pelo mesmo sentimento, queria sair correndo dali, sabia que se continuasse desejando-o daquela maneira, o dissabor e o desencanto seriam inevitáveis.
A sombrinha e o vento pareciam cientes disso e me puxavam para traz, minhas anáguas estavam pesadas demais, nunca me sentira tão desconfortável e tão feliz. Uma saciedade que me fez fincar os saltos no chão, segurar o fôlego e ficar imóvel, até sermos apenas eu e ele em um olhar.
Quando finalmente chegou ao meu lado, ofereceu-me o braço esquerdo e eu entrelacei minhas mãos nele, sem nenhum cumprimento formal, começamos a caminhar rumo à Igreja de Votivkirche, num dia agradável, a primavera explodia em Viena, em todas as usas cores. Meu vestido, em harmonia com o cenário colorido, parecia dançar a cada passo que dava. Não sei bem explicar a sensação que tive, pela primeira vez, tudo soprava ao meu favor. Repleta de um afeto que, como o vento, tomava meus pensamentos desalinhando meus cabelos e fazendo um sorriso transbordar de minhas entranhas.
Percebi que uma mulher de meia idade nos observava, sentada em um banco, alimentava os pombos, mas não olhava para eles e sim para nós dois, balançando a cabeça, em um sinal negativo. De onde teria surgido aquela mulher, não estava ali, ou só a percebi pelo seu gesto repreensivo?
Antes de comentar com ele sobre a tal mulher, Sig disse:
_ Vamos pela sombra, querida, está muito calor!
Concordei silenciosa e seguimos, confessei sentir-me incomodada pela maneira que aquela mulher me olhava.
_Não ligue, porque se incomoda com ela? Há tantas pessoas nos vendo, o mundo nos vela, estamos felizes e apenas por esse motivo, estaremos sempre sendo vigiados. Talvez por inveja, por curiosidade, todos querem o “elixir da satisfação” e não se conformam de ver outros desfrutando dele, despudoradamente como nós.
Ri, quase sem jeito, na tentativa de esconder o contentamento que aquela frase me causara.
_Você é engraçado! Sendo assim, todos me incomodam, não quero ser observada, nem tão pouco invejada!
Aquilo não era verdade, gostava de ser invejada, como era bom estar ali com ele, e saber que tantos outros não tiveram o sabor da plenitude que eu sentia agora.
Sig respondeu-me com aquele sorriso de canto de boca, que sempre dava, quando parecia deduzir sobre meus pensamentos mais profundos.
_Como queria ter seu discernimento, saber quando devo ser quem esperam que eu seja ou apenas ser quem sou. Seria mais fácil viver. A vida parece-me um simulacro, que cultivamos como se fosse real. Tantas conveniências e regras de conduta. Sinto-me caminhando sobre o fio de uma navalha, não vou me adaptar nunca! Faço tudo errado e todos os olhares me condenam. Posso dizer-te que a transgressão me agrada, mas depois vem o vazio, talvez por ter tão poucos pra compartilhar o que penso. Queria pode me isolar, a coexistência me faz mal, muitas vezes me sinto tão violada, que me oculto em mim para não explodir!
_Não vejo motivos para o isolamento total, nem para a adaptação arbitrária... – dizia ele, mas já estava presa a ele e à minha insegurança. Será que Sig me compreendia? Se não houvesse motivos para a adaptação, para que viver em sociedade e porque nos conforta tanto estar em grupo? Não se tratava apenas de conviver e sim de tolerar.
Nós dois já havíamos quebrado essa barreira, apetecia-nos mutuamente de nossa companhia, tínhamos noção do encantamento que exercíamos um sobre o outro. E ele tinha razão, o isolamento era algo impensável, inalcançável, depois de ter estado com ele.
Um simples passeio, um encontro marcado era algo intocável, o nosso tempo era diferente, andávamos serenos e calmos, enquanto a humanidade corria. O vento hora ou outra queria levar-me a sombrinha, mas o sol já estava alto, não poderia me dar ao luxo de fecha-la, as roupas eram pesadas, já não me sentia tão bem. O desejo era ficar mais com ele, diminuía o passo na esperança que o tempo seguisse meu ritmo.
Uma menina arrancava as flores do jardim e destruía todas as pétalas e ria, orgulhosa de seu feito, cada rosa despedaçada causava-lhe uma gargalhada plena.
_Encanta-me o “Toque de Midas” invertido que o ser humano tem, transforma em dejeto, tudo o que toca. Vejo-me naquela menina, inocente, que despedaça flores, devasta sonhos, acaba com a vida dos outros e sorri. E seu sorriso, compra tudo!
_Alguns acreditam no mito da Fênix, minha querida! Da devastação brota o renascimento!
_É uma maneira de interpretar, mas apavoro-me com essa possibilidade, reconstrução a partir da destruição. E parece servir-me como uma luva em relação àquela mulher, que vimos há pouco, por vezes sou como ela. Sinto-me opressora, quero reprimir, destruir a dicotomia e impor a ditadura de minha anarquia pessoal. Sei que meus parâmetros são equivocados, que minhas teorias são falhas, mas mesmo assim necessito de aprovação e se não tenho quero fuzilar meu oponente.
_Não há como estabelecer parâmetros perfeitos, por isso tentamos seguir ou transgredir algum modelo pré-estabelecido e sem esses modelos muitos se sentem perdidos.
_Por isso digo que a realidade é um simulacro, temos que seguir a idéia estabelecida e não nossa intuição. É tão claro para mim, que o homem e a natureza não andam assim de braços dados como nós dois! Como é evidente que a relação entre o homem e a natureza seja o mesmo dos amantes. Como o homem busca a destruição de si e de tudo que o rodeia, a natureza tenta sobreviver a ele. O amor também destrói, enquanto um que busca a destruição de tudo o que o rodeia, o outro que tenta sobreviver ao amor que sente e ao ser amado.
_A única certeza que tenho, -dizia Sig- é que o amor é um estágio da loucura.
Rimos muito depois da afirmação, mas logo o silêncio dedutivo me tocou.
_ Se o amor é insanidade, meu querido, o ódio é uma sanidade? Seria mais lúcido quem ama ou quem odeia?
Sig continuou calado, com os olhos presos no horizonte, parecia intrigado com o cunho da pergunta, puxou o cordão preso em sua casaca e abriu o relógio dizendo:
_Querida, já passa do meio dia, tenho trabalho por fazer, amanhã nos veremos aqui, no mesmo horário.
Beijou-me a palma da mão, puxando-me ao seu encontro, pensei num provável primeiro beijo, mas apenas sussurrou-me ao ouvido:
_Odeie, não há insanidade no ódio, amar sim, é uma debilidade temporária.
Mesmo desapontando-me com duras palavras, tocar sua face, a barba por fazer, fez-me arder as vísceras e a face.
Saiu com o passo apressado, quase desesperado. Passarei na confeitaria, será o álibi perfeito se minha mãe me perguntasse sobre mais uma manhã perdida, passaria também no armarinho, pois haveriam de ter chegado novas linhas de seda, perfeitas para as aulas de bordado rococó com Dona Milu.
Pobre Dona Milu, pobre mamãe! Vítimas de meu ódio íntimo. Tão inocentes!
Embora tivesse certeza que eu era a vítima maior.
Pobre de mim, que amo Sig e sei que a letra “S” jamais será bordada nos monogramas de meu enxoval.



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terça-feira, junho 27, 2006

"Série Bonecas de Papel" - Bia


Bia

A primeira vez que a vi, passeava na orla, submersa numa brincadeira de chutar as ondas, corria na praia, sorria e falava sozinha. Observei sua diversão, quase anônimo, até que um certo momento ela parou e me encarou. Naquele segundo, já sabia que estava perdido.
Aproximou-se, sentou-se do meu lado e olhamos juntos e mudos, o pôr-do-sol.
Enfim, ela quebrou o silêncio me dizendo que existem dois tipos de pessoa, as que são as ondas, e as que são as pedras.
Hoje a compreendo depois de tantos anos. Percebo-me velho, nunca me imaginei assim, tripudiado por esse sentimento que suga meu ânimo por completo, entregar-me-ia à morte se ela viesse. Mas ela não vem.
Depois que Bia se foi, minha existência tornou-se um fardo pesado demais para meus ombros cansados.
Enchia a casa e meu coração de alegria, mas era jovem demais, era onda, como poderia se prender a alguém com eu?
Sinto saudades dela, embora seja grato por ter tido o prazer compartilhar com ela os mais felizes dias de minha vida.
Nem meus cabelos grisalhos, nem toda a minha experiência, ou as precauções da maturidade, protegeram-me dessa menina me abalava, que fazia tremer minhas carnes.
Era doce, macia, viçosa, uma dessas frutas que dão água na boca.
Amo Bia por tudo que me ensinou com seu jeito meigo, fala mansa, conseguia dizer palavras duras, com uma gentileza quase inocente. Fez-me entender a delicadeza de todas as mulheres do mundo.
Dançava com o vento e o riscava com seus movimentos lentos e lascivos, perdia-me naqueles seus sorrisos mudos, que ecoavam por toda espinha dorsal.
Ela era linda!
Aprendi fazer amor com ela nos seus dezenove anos e eu com meus cinqüenta, antes dela era só instinto, sem cuidados, sem entrega.
Desvendou todos os seus segredos e se revelados despertariam as beatas e pasmariam as prostitutas da 315 norte.
Alcancei um amor sem cobranças, livre, independente.
Lembro-me de velar seu sono, dormia sorrindo depois de treparmos.
Eu deitava na rede ao lado da cama e passava a noite em claro, desenhando suas curvas, seu rosto, maravilhado com a perfeição daquela figura.
Sobraram-me as lembranças e os desenhos espalhados por todo meu quarto. Tinha um olhar felino que retratei incansável, cabelos negros que adornavam sua pele alva.
As melhores gravuras são as de suas mãos, dedos longos e finos, toque aveludado, e o prazer que me concediam.
Era perfeita!
Mas como disse era livre e ao me descobrir preso aos seus amores e carinhos, se foi e não voltou mais, deixando-me algumas peças de roupa e essas lembranças latentes.
Apetece-me lembrar de Bia e pensar que ainda é livre, é como o mar.
Alguns a tomariam como uma jovem lunática, outros como uma devassa irresponsável, mas a única certeza que tenho é que ainda amo Bia.
Sinto-me a pedra, talvez aquela onda ainda quebre em mim.


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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quarta-feira, junho 21, 2006

Série "Bonecas de Papel" - Ana




Ana

Só naquele instante entendeu o significado daquela frase, que parecia tão inofensiva: “Fale agora, ou se cale para sempre!” Calou-se naquele momento em que fazia as promessas nupciais, calou-se pelo sacramento do matrimônio, calou-se por ignorar a avalanche de “cale-se” que a tombaria, deixando-na liquidada, fadada àquele sofrimento diário e contínuo.
Percebeu-se muda, por anos, abrindo mão de tudo, permitindo que ele a explorasse e em seguida a consolasse com migalhas de um amor febril e moribundo. Sentia o chicote da hipocrisia açoitando sua carne e seu ego, não gritava, não chorava, apenas deixava que rasgasse seu orgulho e negasse o que era seu por direito.
Por tantas vezes Ana fechou os olhos, para não se encarar mais, não sabia que força era aquela que ele exercia sobre ela, que a dominava, mas já estava farta, já não restava nenhum sentimento e já tinha tomado sua decisão.
Juntou em sua pequena mala, seus pertences mais queridos, dois ou três vestidos, o perfume, o batom, um casaco, pois os dias eram frios, e as noites mais longas. Sairia antes que ele chegasse. Enquanto dobrava as roupas íntimas, lembrava-se que tudo era diferente, Cláudio era um bom homem, apenas se esqueceu que ela ainda precisava de seu amor, de sua atenção e não ia mais mendigar nada.
Ana apenas se perguntava em que parte daquele relacionamento o amor se perdeu, deixando apenas a rotina e o desamor? Não queria chorar, prometeu a si mesma que não choraria mais, e que Ana Lemos Castro morreria hoje, ali, e que voltaria ser Ana Lemos, apenas.
Depois de tudo pronto resolveu tomar banho, retirar até a camada de infelicidade que estava grudada em seu corpo. Pegou seu vestido florido, o mais colorido que tinha, o que Cláudio chegou a pedir para jogar fora, pois era horrível. Colocou-o devagar, como que para se vestir da nova vida, penteou-se, perfumou-se, fechou a casa toda e depois de trancar a porta da frente, colocou a chave debaixo do tapete.
Agora estava só, livre, tinha suas economias, atravessou a rua, pegou o ônibus e desceu na rodoviária. Comprou uma passagem para uma cidade qualquer de interior. Ao embarcar nem olhou para trás.
Dormiu profundamente, estava exausta, sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol entrarem pela janela, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro e sonhava com Cláudio, podia ver os cacos de sua felicidade em cada quadro. Mas tudo é volátil, até os sonhos acabam e ela estava desperta.
A noite caía branda, enquanto Ana olhava as paisagens passando, pensava o quanto eram preciosos os seus dias, o tempo a tragava.
Aquela noite pedia o casaco que há muito não vestia, sentiu-se aquecida e protegida, o cheiro de roupa guardada estava impregnado nele. De alguma forma o casaco trazia seu passado de volta, mas logo voltava à realidade. Via seu próprio reflexo no vidro e estava linda, uma beleza que jamais admitira ter, que se negou a ver por vários anos.
Agora, acomodada, aquecida, dormiu mais uma vez, sonhava com seu casamento, tudo parecia mais um circo, mulheres pesadamente maquiadas, com vestidos cafonas, homens de ternos amarrotados, todos sem modos. Conseguia entender os comentários maldosos de todos ao mesmo tempo, aquilo tudo era muito angustiante, queria gritar, mas estava amordaçada, mas porque não saía correndo, como queria, olhava para as pessoas e todas riam dela. De repente os sons mais altos somem, ficando somente os sussurros: “Não será feliz, não será feliz!”
Uma mulher no canto direito do altar ria, ria tão alto que o som ecoava na igreja e todos cantavam em coro: “Não será feliz com ele, não será feliz com ele!”
Acordou assustada, e aliviada com sua alforria, seria feliz sozinha, sozinha. Mas até quando seus fantasmas a perseguiriam?


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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Série "Bonecas de Papel"- Lídia





Lídia

A mãe a olhava incansável e pensava em silêncio mórbido: “Lídia já sabia o que queria da vida aos cinco anos! Era diferente das crianças da sua idade e até as professoras, que em sua maioria são céticas, diziam que ela era precoce”.
Não tinha vaidades, nem as fúteis nem as necessárias, até para passar um batom, quase travavam uma guerra. E ali, deitada, a mãe conseguia ver suas unhas sem nenhum cuidado vão.
Não conheceu o pai, sorte dela, vivia mais bêbado que sóbrio, pensava a mãe. Menina estudiosa e esforçada. Ingressou na faculdade aos dezessete anos, já tinha um bom emprego aos dezoito e aos vinte e um se formou com louvor.
Depois da formatura foi morar sozinha, escolheu um apartamento próximo ao prédio que trabalhava, gostava de caminhar, de sentir o cheiro da fumaça de óleo diesel, mas não gostava de sinais fechados, e buzinas ecoantes, logo pela manhã, acordava de mau-humor.
Nunca recebia visitas em casa, pois seu apartamento era um caos instalado, papéis, anotações, por todos os lados, como a maioria das jornalistas, era muito desorganizada, chegava a deixar recados em sua secretária eletrônica, para não esquecer os compromissos.
O certo é que muitos a julgavam uma pessoa difícil de se relacionar, tinha poucos, mas seletos amigos.
Trabalhava muito, em dois jornais, um como editora - assistente e no outro como repórter de campo, e escrevia secretamente contos eróticos para uma revista especializada, eles rendiam um bom dinheiro também, e ludibriavam seu desejo de ser escritora, ter seus contos espalhados em livrarias, autografar para os amigos. Assinava os contos com um pseudônimo, para permanecer anônima. Tudo para complementar a renda e poder arcar com as despesas de duas casas.
Como repórter cobria pequenos crimes, brigas conjugais, vinganças, o que terminasse em homicídio, lá estava Lídia querendo saber da história. Os assassinatos exerciam um poder de fascínio sobre ela, havia paixão, drama, emoção, tudo que lhe faltava em sua vida monótona e solitária.
Passava a maioria das noites em claro, acompanhada de Hermes, seu gato, que quase não miava, sua Olivetti era a amiga mais fiel, que entoava música para ninar. Seu compasso firme, as batidas fortes de seus dedos nas teclas, sempre a faziam dormir, no meio de um conto, ou de um artigo. Quando queria sair um pouco de casa descia ao ‘Café Noir’ que ficava do outro lado da rua, pedia cappucino com conhaque e se embriagava, fumava todos os seus cigarros e desmaiava na cama.
Por vezes, sonhava viver dentro de seus contos, sendo amada, desejada, querida e acordava assustada, mais com sua realidade do que com seus pesadelos.
Naquela manhã, mais uma vítima, mulher jovem, a cena era tétrica, mas ainda era uma bela cena, mesmo jogada ali, daquele jeito, nua, com a boca meio aberta, os olhos esbugalhados que pareciam fitar os seus, sentiu um calafrio penetrar suas vísceras.
Muitas pessoas passavam, o segurança do hotel tentava conter os curiosos, hora hóspedes, ora funcionários, alguns fotografavam, outros cochichavam, e riam, num total desrespeito e o ódio tomou-lhe os olhos, enquanto gritava com todos, não é nada disso que estão pensando, mas parecia uma vertigem, tudo girava.
E naquela situação de tontura e confusão mental, Lídia se lembrou de que Bruno, que era o fotógrafo de suas matérias, ligou para avisar de um assassinato, crime passional, e só agora se lembrava como tinha chegado até ali. Ao chegar, ele já esperava por ela, indicou rapidamente um dos apartamentos do luxuoso hotel.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
De repente mais flashs, que ofuscavam os olhos e clareavam a mente, quando ele abriu a porta, uma cama coberta de rosas vermelhas, beijos, declarações de amor. As imagens voltavam com os flashs das máquinas, ele dizendo que a amava, que desejou aquele momento, por anos. Bruno amarrando delicadamente suas mãos com lenços na cabeceira da cama, os beijos, o sexo.
Beberam muito, tomaram pílulas, e ela se lembrava das alucinações, da intensidade do sexo, do aroma das rosas, dos espinhos cravados na carne a cada penetração, mas não sentia dor, só o êxtase profundo.
Foi pega de surpresa, como um animal faminto, ela se entregou aos seus desejos, se deixou levar por ele, como nunca havia se permitido antes, sentiu-se livre, feliz, saciada.
Dormiu profundamente.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
Ele a desamarrando e mais declarações sobre seus contos, a chamava de rosa-dos-ventos, o pseudônimo que usava nos contos supostamente secretos, e depois de várias garrafas de vinho ela pergunta se morreria de amor.
Bruno sem hesitar, responde que sim e pede para que Lídia descreva com detalhes e ali fizeram um pacto.
Mais uma vez a escuridão e o silêncio, quebrados pelos flashs.
E olhou mais uma vez para o corpo da mulher, um único tiro no peito, e tocou o seu dando-se conta que aqueles olhos eram dela. O outro tiro foi o de clemência por si, Bruno havia se matado, seu corpo estava ali também, mas bem escondido, num canto atrás da cama.
Agora, talvez entendesse o amor de sua mãe, talvez seus olhos estivessem aguçados para uma boa história e cegos para o espelho, nunca se vira linda, como estava ali, mesmo estando morta, mesmo nua, não tinha mais pudores, não se importava mais.
As mães amam as filhas, mas retardam seu crescimento, dão valor excessivo a elas, havia poucas pessoas naquela sala, e sua mãe a velava zelosa, acariciava seus cabelos, como se ainda estivesse ali, com seus cinco anos, necessitada da presença materna.
A mãe tinha razão, Lídia sabia o que queria ser, desde os cinco anos, mas não se dava conta que nunca soube quem sempre foi.

Agradecomentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.

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