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quarta-feira, setembro 06, 2006


Farrapo


Queria que aquilo terminasse logo, estava cansada, só conseguia pensar em todas as tarefas do dia seguinte. Ficava se perguntando se era ela quem passava por tudo aquilo, ou se um farrapo humano ali, jogado, puído, entregue, enquanto não quisessem tomar conhecimento dela, de suas fragilidades ou frustrações.
Sentia-se apenas um pedaço de carne usado e viajava em divagações existencialistas. Às vezes se mexia, para perceber-se ainda viva e para que não jogassem uma pá de cal por cima daquele corpo vazio.
Amordaçava todos os sentimentos num canto qualquer de sua mente, e os deixava ali, enclausurados. Por vezes eles berravam em agonia, choravam pedindo clemência, mas ela parecia inerte à vida.
Olhava o ventilador, que rodava enfadonho, no teto, será que ele não se cansava, mesma rotação, lenta, rotineira. Ela já estava entregue, não sabia mais como se esquivar dos duros golpes que sofrera.
Na cama, aqueles movimentos irritavam na profundamente, movimentos invasores, repetitivos, que deveriam ser de prazer, mas soavam-lhe como obrigação, então, calava-se e cedia, e cedia, e cedia.
E ao invés de fechar os olhos, ela fitava-o com ódio visceral, sabia que ele não tomara conhecimento dela e só se prendia aos seus desejos. Talvez se sentisse vitorioso, por ter sugado toda sua dignidade, por tê-la sufocado, domado sua personalidade forte, por completo.
Talvez se lembrasse de todas as mulheres e revivesse todas as sensações libidinosas, que tivera até ali. Por que ele não acabava com aquilo logo? Seu corpo todo molhado, transpirava fúria e desejo, rendido ao prazer extremo e almejava mais, e mais. Por que tinha o prazer de prolongar o que poderia ser feito em poucos minutos?
E o ventilador girava, naquele mesmo ritmo enfadonho, mas agora parecia produzir alguma brisa.
Virava-a como um boneco de molas, como uma marionete, sem vontade própria, e nem se dava conta disso, se refestelava dela, revirava os olhos, quase bailava, fazendo bom uso daquela migalha de gente que se transformara.
E por que ela aceitava aquela imposição, deveria provocar uma revolução, tomar de volta o que era seu por direito, de uma forma ou de outra aquilo acabaria, e quando chegasse ao fim, ambos deitariam, cada um pro seu lado, e quieta esperaria o outro dia chegar.


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Convido você a conhecer outro blog interessante:
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4 comentários:

Claudio Eugenio Luz disse...

Uma narrativa dilacerante, minha cara; daquelas que procuram romper com determinadas situações extremamentes sufocantes.

hábeijos

Anônimo disse...

Belíssimo texto: não somente em prol da dignidade feminina, como também um libelo sobre a exploração de um ser humano por outro - algo que, corriqueiramente, já aceitamos, por estar tão entranhado, em nosso íntimo, a semente da derrota, perante um sistema hipócrita. Meus respeitos, Larissa - Jorge Luiz.

Anônimo disse...

Pena que isto exista em todos os cantos e recantos do mundo... mas, isso também é "mesmice"... e ninguém se incomoda , não é mesmo? Nem o agente ativo e nem o passivo... Parabéns pelo texto!

Anônimo disse...

Belo texto Larissa. Bom te ler novamente. Tava sumida hein?!?