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quarta-feira, junho 21, 2006

Série "Bonecas de Papel" - Ana




Ana

Só naquele instante entendeu o significado daquela frase, que parecia tão inofensiva: “Fale agora, ou se cale para sempre!” Calou-se naquele momento em que fazia as promessas nupciais, calou-se pelo sacramento do matrimônio, calou-se por ignorar a avalanche de “cale-se” que a tombaria, deixando-na liquidada, fadada àquele sofrimento diário e contínuo.
Percebeu-se muda, por anos, abrindo mão de tudo, permitindo que ele a explorasse e em seguida a consolasse com migalhas de um amor febril e moribundo. Sentia o chicote da hipocrisia açoitando sua carne e seu ego, não gritava, não chorava, apenas deixava que rasgasse seu orgulho e negasse o que era seu por direito.
Por tantas vezes Ana fechou os olhos, para não se encarar mais, não sabia que força era aquela que ele exercia sobre ela, que a dominava, mas já estava farta, já não restava nenhum sentimento e já tinha tomado sua decisão.
Juntou em sua pequena mala, seus pertences mais queridos, dois ou três vestidos, o perfume, o batom, um casaco, pois os dias eram frios, e as noites mais longas. Sairia antes que ele chegasse. Enquanto dobrava as roupas íntimas, lembrava-se que tudo era diferente, Cláudio era um bom homem, apenas se esqueceu que ela ainda precisava de seu amor, de sua atenção e não ia mais mendigar nada.
Ana apenas se perguntava em que parte daquele relacionamento o amor se perdeu, deixando apenas a rotina e o desamor? Não queria chorar, prometeu a si mesma que não choraria mais, e que Ana Lemos Castro morreria hoje, ali, e que voltaria ser Ana Lemos, apenas.
Depois de tudo pronto resolveu tomar banho, retirar até a camada de infelicidade que estava grudada em seu corpo. Pegou seu vestido florido, o mais colorido que tinha, o que Cláudio chegou a pedir para jogar fora, pois era horrível. Colocou-o devagar, como que para se vestir da nova vida, penteou-se, perfumou-se, fechou a casa toda e depois de trancar a porta da frente, colocou a chave debaixo do tapete.
Agora estava só, livre, tinha suas economias, atravessou a rua, pegou o ônibus e desceu na rodoviária. Comprou uma passagem para uma cidade qualquer de interior. Ao embarcar nem olhou para trás.
Dormiu profundamente, estava exausta, sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol entrarem pela janela, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro e sonhava com Cláudio, podia ver os cacos de sua felicidade em cada quadro. Mas tudo é volátil, até os sonhos acabam e ela estava desperta.
A noite caía branda, enquanto Ana olhava as paisagens passando, pensava o quanto eram preciosos os seus dias, o tempo a tragava.
Aquela noite pedia o casaco que há muito não vestia, sentiu-se aquecida e protegida, o cheiro de roupa guardada estava impregnado nele. De alguma forma o casaco trazia seu passado de volta, mas logo voltava à realidade. Via seu próprio reflexo no vidro e estava linda, uma beleza que jamais admitira ter, que se negou a ver por vários anos.
Agora, acomodada, aquecida, dormiu mais uma vez, sonhava com seu casamento, tudo parecia mais um circo, mulheres pesadamente maquiadas, com vestidos cafonas, homens de ternos amarrotados, todos sem modos. Conseguia entender os comentários maldosos de todos ao mesmo tempo, aquilo tudo era muito angustiante, queria gritar, mas estava amordaçada, mas porque não saía correndo, como queria, olhava para as pessoas e todas riam dela. De repente os sons mais altos somem, ficando somente os sussurros: “Não será feliz, não será feliz!”
Uma mulher no canto direito do altar ria, ria tão alto que o som ecoava na igreja e todos cantavam em coro: “Não será feliz com ele, não será feliz com ele!”
Acordou assustada, e aliviada com sua alforria, seria feliz sozinha, sozinha. Mas até quando seus fantasmas a perseguiriam?


Agradecimentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.


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Convido você a conhecer outro blog interessante:

www.oscaleidoscopios.blogspot.com

4 comentários:

Edilson Pantoja disse...

Dentre eles, refiro-me aos fantasmas, acredito que a solidão será o mais importuno. Mas, calma!,não estou a defender os "Cale-se". A questão, por complexa, exige discussão maior.
Recebe meu abraço e obrigado por aparecer no Albergue!

Anônimo disse...

Quantas vezes não temos essa vontade de largar uma vida para viver uma nova, completamente livre de tudo e todos. O sentimento de liberdade é arrebatador!

Anônimo disse...

Estou tentando te enviar uma imaem mas seu e-mail retorna! Sua caixa deve estar cheia!

Claudio Eugenio Luz disse...

Porreta! Quem derá a gente pudesse trocar de vida como quem troca de sapatos. Ah, mas aí, sinceramente, já teria nenhum sentido.Então, é correr para jamais permanecer calado.

hábeijos