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quarta-feira, junho 21, 2006

Série "Bonecas de Papel"- Lídia





Lídia

A mãe a olhava incansável e pensava em silêncio mórbido: “Lídia já sabia o que queria da vida aos cinco anos! Era diferente das crianças da sua idade e até as professoras, que em sua maioria são céticas, diziam que ela era precoce”.
Não tinha vaidades, nem as fúteis nem as necessárias, até para passar um batom, quase travavam uma guerra. E ali, deitada, a mãe conseguia ver suas unhas sem nenhum cuidado vão.
Não conheceu o pai, sorte dela, vivia mais bêbado que sóbrio, pensava a mãe. Menina estudiosa e esforçada. Ingressou na faculdade aos dezessete anos, já tinha um bom emprego aos dezoito e aos vinte e um se formou com louvor.
Depois da formatura foi morar sozinha, escolheu um apartamento próximo ao prédio que trabalhava, gostava de caminhar, de sentir o cheiro da fumaça de óleo diesel, mas não gostava de sinais fechados, e buzinas ecoantes, logo pela manhã, acordava de mau-humor.
Nunca recebia visitas em casa, pois seu apartamento era um caos instalado, papéis, anotações, por todos os lados, como a maioria das jornalistas, era muito desorganizada, chegava a deixar recados em sua secretária eletrônica, para não esquecer os compromissos.
O certo é que muitos a julgavam uma pessoa difícil de se relacionar, tinha poucos, mas seletos amigos.
Trabalhava muito, em dois jornais, um como editora - assistente e no outro como repórter de campo, e escrevia secretamente contos eróticos para uma revista especializada, eles rendiam um bom dinheiro também, e ludibriavam seu desejo de ser escritora, ter seus contos espalhados em livrarias, autografar para os amigos. Assinava os contos com um pseudônimo, para permanecer anônima. Tudo para complementar a renda e poder arcar com as despesas de duas casas.
Como repórter cobria pequenos crimes, brigas conjugais, vinganças, o que terminasse em homicídio, lá estava Lídia querendo saber da história. Os assassinatos exerciam um poder de fascínio sobre ela, havia paixão, drama, emoção, tudo que lhe faltava em sua vida monótona e solitária.
Passava a maioria das noites em claro, acompanhada de Hermes, seu gato, que quase não miava, sua Olivetti era a amiga mais fiel, que entoava música para ninar. Seu compasso firme, as batidas fortes de seus dedos nas teclas, sempre a faziam dormir, no meio de um conto, ou de um artigo. Quando queria sair um pouco de casa descia ao ‘Café Noir’ que ficava do outro lado da rua, pedia cappucino com conhaque e se embriagava, fumava todos os seus cigarros e desmaiava na cama.
Por vezes, sonhava viver dentro de seus contos, sendo amada, desejada, querida e acordava assustada, mais com sua realidade do que com seus pesadelos.
Naquela manhã, mais uma vítima, mulher jovem, a cena era tétrica, mas ainda era uma bela cena, mesmo jogada ali, daquele jeito, nua, com a boca meio aberta, os olhos esbugalhados que pareciam fitar os seus, sentiu um calafrio penetrar suas vísceras.
Muitas pessoas passavam, o segurança do hotel tentava conter os curiosos, hora hóspedes, ora funcionários, alguns fotografavam, outros cochichavam, e riam, num total desrespeito e o ódio tomou-lhe os olhos, enquanto gritava com todos, não é nada disso que estão pensando, mas parecia uma vertigem, tudo girava.
E naquela situação de tontura e confusão mental, Lídia se lembrou de que Bruno, que era o fotógrafo de suas matérias, ligou para avisar de um assassinato, crime passional, e só agora se lembrava como tinha chegado até ali. Ao chegar, ele já esperava por ela, indicou rapidamente um dos apartamentos do luxuoso hotel.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
De repente mais flashs, que ofuscavam os olhos e clareavam a mente, quando ele abriu a porta, uma cama coberta de rosas vermelhas, beijos, declarações de amor. As imagens voltavam com os flashs das máquinas, ele dizendo que a amava, que desejou aquele momento, por anos. Bruno amarrando delicadamente suas mãos com lenços na cabeceira da cama, os beijos, o sexo.
Beberam muito, tomaram pílulas, e ela se lembrava das alucinações, da intensidade do sexo, do aroma das rosas, dos espinhos cravados na carne a cada penetração, mas não sentia dor, só o êxtase profundo.
Foi pega de surpresa, como um animal faminto, ela se entregou aos seus desejos, se deixou levar por ele, como nunca havia se permitido antes, sentiu-se livre, feliz, saciada.
Dormiu profundamente.
Tudo voltava à escuridão e ao silêncio.
Ele a desamarrando e mais declarações sobre seus contos, a chamava de rosa-dos-ventos, o pseudônimo que usava nos contos supostamente secretos, e depois de várias garrafas de vinho ela pergunta se morreria de amor.
Bruno sem hesitar, responde que sim e pede para que Lídia descreva com detalhes e ali fizeram um pacto.
Mais uma vez a escuridão e o silêncio, quebrados pelos flashs.
E olhou mais uma vez para o corpo da mulher, um único tiro no peito, e tocou o seu dando-se conta que aqueles olhos eram dela. O outro tiro foi o de clemência por si, Bruno havia se matado, seu corpo estava ali também, mas bem escondido, num canto atrás da cama.
Agora, talvez entendesse o amor de sua mãe, talvez seus olhos estivessem aguçados para uma boa história e cegos para o espelho, nunca se vira linda, como estava ali, mesmo estando morta, mesmo nua, não tinha mais pudores, não se importava mais.
As mães amam as filhas, mas retardam seu crescimento, dão valor excessivo a elas, havia poucas pessoas naquela sala, e sua mãe a velava zelosa, acariciava seus cabelos, como se ainda estivesse ali, com seus cinco anos, necessitada da presença materna.
A mãe tinha razão, Lídia sabia o que queria ser, desde os cinco anos, mas não se dava conta que nunca soube quem sempre foi.

Agradecomentos especiais ao fotógrafo Alexandre Costa, autor da fotografia.

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