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terça-feira, agosto 01, 2006

O relojoeiro - Homenagem ao amigo Anderson Alcantara




Vivia naquela cidade desde que nasceu, herdou do pai a relojoaria, a profissão e as vistas cansadas. A cidade era pequena, tudo girava em torno daquela pequena praça, que abrigava um velho chafariz quebrado há décadas e alguns bancos onde os idosos jogavam damas, baralhos ou dados. A loja era bem localizada, ficava entre o único mercado e o correio, não era grande coisa, mas sustentava sua pequena família, mãe e irmão pequeno.
Aparentava ter mais idade, os óculos lhe davam um ar sério e catedrático, não sorria muito, isso porque não gostava de seus dentes, mas era pura cisma, não havia nada de errado com eles. Enquanto trabalhava sua mente borbulhava como as cachoeiras.
Conseguia viajar naquelas engrenagens minúsculas, sem contar das areias desérticas que passeavam de cima para baixo nas ampulhetas, que o faziam caminhar sobre o silêncio inquietante do tique-taque.
Anderson era calmo, como deveria ser, sua profissão tão delicada como suas mãos finas e precisas. Suaves os dedos pousavam sobre o mecanismo frágil e o alívio se fazia com a volta do bailado, do vai e vem da estrutura metálica que marcava prazos infinitos.
A única coisa que afetava sua rotina era a passagem diária, quase sempre pontual de uma moça, cabelos negros, um passo apertado, rápido.
Ele ouvia o toque-toque de seu sapato a metros de distância e corria para a porta do estabelecimento, só para vê-la passar. Conhecia o pai da moça, já levara um modelo raro de relógio de bolso para que restaurasse, herança de família. E quando a via passar lembrava-se daquele relógio de prata que poliu, e fez voltar a funcionar. Lindo, raro como ela. Poderia tocá-la como tocou o objeto.
Depois dos suspiros retomava seu trabalho, seus minutos corriam contra as horas, não era um passatempo, era o ganha pão, por vezes aquela música do tempo soava melodia para seus ouvidos, por vezes urrava pedindo quietude.
Daqueles movimentos nada sensuais das peças, via-se tocando aquela menina-moça, naquele ritmo, como dos ponteiros de segundos, sempre, sempre e assim os minutos se arrastavam como se fizesse sexo com ela, como se a tocasse profundo como as horas. Aquele som o afetava, as horas o afetavam eram longas demais para uma espera e naquele dia, a moça não passou. E por vários dias a esperou. E depois de mais de uma semana ele surpreendeu-se com ela dentro de sua loja, não sabia bem como se comportar, suas pernas tremiam com um olhar direto, então se esquivava.
─ Posso ajudar? – perguntou com a voz meio embargada.
─ Sim claro, meu noivo faz aniversário hoje. Não sei escolher bem o presente. Meu pai me deu dinheiro.
Anderson foi tomado por um sentimento corrosivo, destes cáusticos mesmo, que faz alguém atentar contra o outro com ódio voraz, tinha ciúmes daquele noivo. Aquele maldito podia possuí-la, enquanto para ele só sobrava a ânsia. Queria só tê-la, como mulher, não carecia presentes caros, nem mimos. Mas seria audácia dizer o que pensava. Mostrou então um modelo qualquer, mas não se deu ao silêncio.
─ Se fosse minha, já me bastaria. – disse quase sussurrando temeroso, mas lançara os dados de seu jogo secular, só teria aquela chance.
Como se não tivesse ouvido ela aceitou a escolha e pediu:
- Por favor, em um embrulho para presente!
- Claro! – respondeu desconcertado pelo seu atrevimento. Fez um laço para finalizar o pacote, providenciou uma sacola e entregou a e junto com um único afago. Ela saiu apressada.
Tomava mais uma vez seu trabalho, ocupava-se dele na intenção de esquecer o equívoco, mas como martelos replicantes, os segundos soavam em sua mente: “porque, porque?”
Muitos desses segundos, horas, dias se passaram, até que uma noite bateram na porta de sua casa, que ficava ao fundo da loja, com a tez sisuda o pai da moça a trazia pelo braço, raivoso e bufando dizia num tom de cobrança:
- Belise disse que fizera mal a ela, desde sua vinda aqui não come direito e nem quer mais noivar, pois fique com ela, que desonrou minha casa e meu nome!
A vida a afetava desde que as palavras do relojoeiro penetraram seus ouvidos cansados de falsas declarações, talvez por desejar outra vida para si, jogou no mundo seu pai verdades distorcidas, simulou ter se entregado ao relojoeiro e não ao homem que o pai escolhera para ela.
Sem entender o que acontecia, o rapaz a acolhe em seus braços, como uma dádiva, uma resposta à suas orações, toma-a para si, procura seus olhos. Ela o fita num pedido desesperado para que não a desminta, entendem-se neste olhar.
O pai sai sem esperar resposta. Esbravejando sozinho pela praça.
Naquela noite ele cederia a cama para ela, a deixaria com seus pensamentos, a conversa poderia deixar o dia seguinte chegar. Mas ele não conseguia dormir, ficou olhando aquela figura em sua cama, não tinha relógio em seu quarto, mas as horas passavam abandonadas, como as mãos dela.
Cada segundo sem tocá-la seria um martírio, queria tê-la e estava ali, tão perto, seu corpo latejava aquele nome; “Belise, Belise”, mas sua mente procurava entendê-la. Ela abriu os olhos, não estava dormindo, perguntou:
- Você me deseja? E sem dar tempo para que ele respondesse, tirou a blusa, desceu a saia e o beijou com fúria. Tomaram-se e se saciaram, seguidas vezes.
Não era um jogo, mas queria surpreendê-la como ela fez com ele, queria ser o caçador e não a caça. Era devoto, mas queria ser adorado, como aquela menina de corpo miúdo e tão forte. Colocou em cheque, numa só noite, a vida de três homens feitos. E daqueles três ele era o felizardo, que a possuíra com ternura, acariciara seus longos cabelos. Os seus pensamentos o acalantaram e trouxeram o sono.
Acordou num sobressalto, pensando que aquilo tudo não passara de um sonho, mas estava no chão, sinal que não era uma ilusão, mas na cama nem sinal dela.
─ Mãe! - chamava aflito- onde está Belise? Viu quando ela se levantou?
─ Quem é Belise? – pergunta a mãe, ignorando o desespero do filho.
─ Aquela moça que o pai veio deixar aqui ontem. –explicava num tom perturbado.
─ Não sei do que está falando meu filho, nada disso aconteceu ontem, está bem?
Sem entender Anderson pegou o relógio de bolso que herdara do pai dizendo:
─Não me espere para o almoço, vou procurar Belise.

2 comentários:

Anônimo disse...

O que seria de nós se não fossem os sonhos???

Claudio Eugenio Luz disse...

Nesta terra em transe, um bocadinho do tempo que nos resta, a gente vai caminhando, mesmo que através de um sonho.

hábeijos