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sábado, julho 01, 2006

o encontro III

O encontro (parte III)

Não que eu estivesse mentindo, dissimulando ou coisa parecida, ao que me cabe em entendimento as mulheres são perversas mesmo. Trazemos conosco a síndrome do poder, da dominação, é prazeroso ter o comando da situação. Culpamos-nos, nos ferimos, nos matamos sempre, para que talvez amanhã sejamos diferentes do que somos hoje.
Mudar é uma constante somos como camaleões, lulas, polvos e outros animais que se camuflam para se proteger. Não quis ver Sig sofrer, só queria racionalizar suas reações diante do que não teríamos nunca, mas diante da descoberta de uma possibilidade de nos machucarmos, decidimos romper.
Hoje todos meus atos são claros pra mim, desde o amor por Sig, até o banho no Danúbio, tudo é lógico, agora.
Eu me disfarcei, me feri e no fim fugi como pude de meus predadores naturais, mesmo sabendo, que um dia, seria apanhada por um deles e que minha corrida era mais contra mim, contra o que sentia por ele, do que contra meus inimigos.
Mas não quis me esconder dele, lembro-me do esforço para continuar ali, mesmo sabendo que seria doloroso dar-me por vencida e depois de tombada pelo desejo de minhas próprias entranhas, me vi só como sempre fui.
Assim, mesmo permitindo que Sig ficasse comigo um bom tempo, desfazendo as amarras que a sociedade me impunha, libertando-me para uma vida plena e moderna, trazia comigo um pavor incontrolável de perde-lo, de perder o controle sobre mim mesma, perder a sanidade.
Não rezei a cartilha de mãe, que e mesmo morta ainda tentava me dominar. Não sei se me amava e me protegia, ou se me odiava e me privava de tudo o que mais quis. Por vezes sonhava com ambos conspirando contra mim.
Mas fui mais forte que ela e passei a ignorar as pessoas que me rodeavam. E Sig ao meu lado, sustentando-me com seu afeto, cuidando de mim. Mas não me adaptei, nunca me adaptarei à sociedade, não o culpo por ter tentado, mas meus padrões são diferentes da maioria das mulheres dessa era.
Jamais me esquecerei do fato de ter perdido a memória, mas talvez aquilo fosse necessário. Histeria, ato falho, amnésia temporária, como saber?
O certo é que mudei de atitude pouco depois de ver meu amado, naquela manhã ensolarada em Viena, após nossa longa caminhada. Recordo-me de entrar em um café e pedir todos os licores. Embriaguei-me como nunca. Andei sem rumo, até encontrar-me às margens do Danúbio, e ao som de “Vozes da Primavera” dancei com ele, me despi de minhas anáguas, de meu espartilho, que roubaram a infância e o fôlego, entregando-me sem culpa, inteira.
Voltei a ser menina, enquanto o mundo rodopiava, os sinos dobravam, alguns passantes riam, outros paravam para olhar, eu me deixava levar, sentindo o frescor da água me invadir e como era bom não ter o peso das anáguas!
Assim depois de libertar-me de meus medos fiquei exausta, um descuido, um escorregão, uma queda e não me recordo de como acabei no hospital. Sei que estava cansada daquela casca pesada que carregava comigo, o banho me livrou por alguns instantes e Sig me ajudou por muito tempo. Mesmo estando longe dali, naquele momento, suas palavras me incentivavam, me permitiam ser eu e deixei-me levar pela correnteza.
Aprendi que é inútil lutar contra forças maiores que eu, mas que vale lutar pelo que acredito e ao acreditar, o impossível pode tornar-se real, mesmo em sonho, ou em um simulacro.
Ao sair do hospital, fui para casa, queimei todo meu enxoval, numa revolta contra meu passado fútil, não queria mais perder meu tempo com coisas inúteis, queria meu tempo para ser feliz. Encontrei um bom emprego, onde ganhava o suficiente para viver e estudar e deixei a clausura que tia Milu me impunha.
Agora compreendia o que minha mãe passou, mas a pobre não teve forças pra lutar, escolheu o caminho mais curto e achou melhor ou mais fácil, se matar.
Compreendo melhor o que se passa aqui, em meu íntimo, entender que Sig e eu nos amamos e será assim enquanto vivermos. Mas nos libertamos, não quisemos mais amarras, eu não quis mais jaulas, um erro, como saber? E mesmo longe dele, sinto-me acorrentada ao mesmo sentimento que nos uniu. Aquele encantamento de outrora se faz saudade e persistência para continuar distante. Ainda me escreve longas cartas, conta de seu interesse pelo desconhecido mundo da psique e me surpreendo encontrando-me em cacos de suas pacientes.
Mas já não assina mais “de seu Sig”, assina apenas “Sigmund Freud”.
E mesmo sabendo que posso mudar tudo com um simples sim e um sorriso, pois meu sorriso compra tudo, prefiro comandar minha vida, longe de Sig. E de alguma forma ainda caminho na nossa praça numa Viena em primavera, ouvindo “As vozes da Primavera” dentro do meu coração e faço com que nosso encontro seja eterno, congelado nos passos lentos daquele passeio.

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