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sábado, julho 01, 2006

o encontro II

O encontro (parte II)

Acordei com um gosto amargo na boca, não me lembrava de ter dormido e aquele lugar não podia ser meu quarto. A cabeça girava, estava confusa, atordoada, com dores por todo o corpo.
Abri e fechei os olhos incontáveis vezes, na tentativa alucinada de ter a vaga lembrança de quem era, e o que fazia ali, em vão.
Tinha o cheiro de primavera impregnado em minha pele e alma e parecia dançar uma valsa bêbada, que tocava lenta e o cravo parecia desafinado, engasgado com suas notas, quase num pedido de socorro.
Passei minhas mãos sobre o rosto, senti um corte na testa, parecia febril, levantei o lençol, um hematoma no joelho e uma escoriação no braço. Não havia um espelho ali, Talvez se visse meu rosto, ver meu reflexo no vidro e ver onde estava, mas já era noite e não conseguia chegar à janela.
Não me lembrava do que causara aquele estrago todo. Onde estariam os meus? Por alguns segundos senti-me uma indigente, mas esse sentimento não me tomou por muito tempo, a curiosidade de saber de mim era maior que qualquer outro sentimento. Estava mal vestida e despenteada e isso era um ultraje, sempre fui tão vaidosa, aquilo me parecia uma afronta, uma brincadeira de mau gosto.
O relógio fazia um barulho estranho, e os ponteiros não saíam do lugar, o ponteiro dos segundos dava pulos, no mesmo lugar. Estaria quebrado ou eu me encontrava em algum lapso temporal?
Agoniada, tentei me levantar, mas não tinha forças e daquele jeito só me machucaria mais.
De algum lugar lá fora, alguém cantava, com uma voz destoante, como se sussurrasse uma canção de ninar, baixo, bem baixo...
“Cante uma canção enfadonha
Dessas muito medonhas
E veja se desperta do pesadelo que sonha
Cante o copo com água, o laxante!
O descongestionante, o calmante!
Cante para matar o tédio
Que contra a vida
Não há remédio
remédio
Que não seja a sorte
Que não seja a morte”
Aquela maldita música fazia com que minha cabeça rodasse ainda mais, precisava de um analgésico, algo que aplacasse minhas dores emocionais, estava só, abandonada, e aquele cheiro de primavera já me deixava enjoada e mesmo assim, adormeci.
_Querida, querida, que loucura foi essa?- dizia alguém baixinho, parecia me tirar de um transe profundo – Querida, acorde!
Ao abrir os olhos, eu deparei-me com um homem, jovem, bonito, bem vestido e ao encara-lo, senti-me invadida, feia, tentei cobrir o que pude, mas ele estava sentado sobre o lençol.
_Querida, não fique assustada, se te incomodo posso deixa-la sozinha, por alguns minutos, até se recompor.
Peguei firme em sua mão, não poderia deixa-lo ir, como descobriria quem era e o que fazia ali? Pedi, num gesto desesperado, que não me deixasse só.
_Como cheguei aqui? O que aconteceu comigo? – não queria demonstrar meu desespero, nem a extensão de meu esquecimento, não consegui disfarçar.
Com um gesto gentil, passou a mão sobre minha testa.
_Está febril, é melhor descansar! – agora ele não conseguiu disfarçar o desespero.
Não descansaria enquanto tudo não estivesse bem claro pra mim, a começar de quem era.
_Só quero saber o que faço aqui, o que acontece.
Ajeitou meu travesseiro, ficando bem próximo, seus braços quase me tocavam, seus olhos pairavam sobre o decote da camisola, demonstrava desejo por mim. Talvez pudesse me aproveitar disso, resolvi arriscar.
_O culpado disso tudo é você! – não tinha idéia do que dizia, mas podia dar certo e talvez fosse mesmo culpa dele, tudo aquilo, tinha necessidade de encontrar um culpado.
_Não creio que seja minha culpa, querida! – sorriu – Essas coisas acontecem, entendo sua atitude, mas você deveria ter sido mais cautelosa. Isso sim e eu não percebi seus sinais. Aí reside minha culpa.
_Não tenho me cuidado? Como pode dizer isso? Nem me imaginava e nem me sentia doente. Ri quase constrangida, na tentativa de dissimular minha ingrata surpresa.
_Creio que estava confusa e ainda está! Seu comportamento estava diferente ontem, seu corpo deu muitos sinais, poderia ser difícil pra eu perceber, mas pra você não. O cansaço ao caminhar, as tonturas, o mal estar.
O chão e o quarto giravam como o um carrossel, cheio de luzes sombras à sua volta, perdi o eixo. Ele esfregava meus pulsos com força, na tentativa de que eu permanecesse acordada, mas fui sumindo aos poucos, até desfalecer.
Quando acordei, ainda estava comigo, acariciava meus cabelos e punha compressas de água em minha testa. Agora tinha certeza do nosso envolvimento, algo de alguma forma, nos unia.
_Trate de ficar boa logo, temos um trato, lembra? Dizia ele olhando para a compressa dentro da bacia, e sorrindo.
_Temos um trato? Não me lembro de trato algum! Temos?
Continuou olhando para a compressa, torceu e colocou sobre minha testa.
_Talvez não tenha dividido todos os meus pensamentos com você, mas creio que é chegado o momento.
_Ah, claro, - eu debochava – falar com uma moribunda em seu leito de morte é mais fácil!
As palavras saíram dessa vez sem que eu as escolhesse. Ele ria de mim, percebia que não era a única que confabulava.
_A febre está cedendo, - disse puxando o cordão preso em sua casaca e ao abrir o relógio explicou que tinha trabalho por fazer – volto antes do anoitecer. Num gesto automático olho para o relógio da parede, ainda parado, marcava dez para duas e o ponteiro dos segundos sempre sobre o doze, sempre tentando sair, preso naquele segundo infindável.
Então, beijou-me a mão e se abaixou para me beijar a face, mas apenas sussurrou em meu ouvido:
_Temos um trato e se esqueceu, faça o favor de lembrar!
Quem era aquele homem que mexia tanto comigo?
Chamou a enfermeira para me acompanhar e foi embora, pelo menos não ficaria mais sozinha.
Depois de alguns segundos ele voltou.
_Querida, eu não gosto de ficar esperando e hoje, passei a manhã te esperando na praça, não faça mais isso!
Dessa vez beijou-me a face e saiu correndo, dava pra ouvir suas gargalhadas bem depois de ter deixado o quarto. E como para aquele momento não fugisse, segurei o seu beijo com as duas mãos e meu coração estava calmo, aquele desconhecido tinha o poder de me acalentar os medos, as angústias.
A enfermeira era uma senhora de meia idade, olhava-me nos olhos, sisuda, sempre com as mãos frias, mas cuidava de mim com carinho. Anotava tudo, desde os remédios, refeições, media minha temperatura. Será que era assim com todos os pacientes do hospital, era tão quieta, que às vezes me assustava, eu não consigo ficar calada muito tempo, como ela conseguia sustentar aquele silêncio, parecia-me tortura.
O tempo parecia estar estacionado como as horas do relógio na parede.
Sentia vontade de sair correndo, mas queria poder me lembrar, desejava tantas coisas que me perdia nos meus anseios. E sentia-me presa naquele segundo infinito. Minhas vísceras estremeciam, o pavor me sufocava, a febre só aumentava, estava sem ar, queria gritar, mas poderiam tomar-me como louca.
E poderia ser esse meu mal, porque não me lembrava de nada, a pancada na cabeça poderia ter causado o esquecimento. Tive a nítida impressão de estar acorrentada em um lugar escuro, com uma janela inalcançável, por onde entrava uma luz amarela, que iluminava a mim, baratas, ratos, lacraias, sujeira por toda parte. Queria chamá-lo, mas estava amordaçada.
_Tente voltar criança, - uma voz me dizia – tente voltar!
Lentamente voltava do pesadelo, estava tendo alucinações. E alguém do lado de fora do quarto cantava a mesma canção. Quem era aquela mulher?
_Sou sua Tia Milu, sou sua única família, não se lembra, criança? – dizia, tinha cabelos cinza e olhos amendoados, quase doces - Irmã de seu pai, não se lembra?
E eu não me recordava dela.
_A enfermeira me disse delirou por conta da febre, que gritava, chorava e anotou muito do que disse, talvez queira ler, parece confusa. Entregou-me um bloco de papel, com várias frases e palavras sem sentido, soltas. Talvez aquilo pudesse me abrir alguma porta ou me faria lembrar de tudo.

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